Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


21/12/2012




   A tradição popular apresenta, pari passu, um imenso bestiário, em que os animais personificam qualidades - virtudes ou defeitos dos homens:
   as atitudes da astuta raposa, que não tem pejo em enganar os outros animais, para conseguir os seus intentos, podem personificar a falsidade humana;
   o lobo, que não olha a meios para atingir os seus fins, como a comadre raposa, embora, não raro, seja ele o enganado, pode corresponder à má sorte dos que sempre enganam, mas que, ironicamente, também são enganados;
   o cão, que, embora personifique a lealdade, também assume, por vezes, o papel de traidor, que não é capaz de reconhecer a bondade do dono e acaba por mordê-lo, personificando os homens que esquecem quem lhes valeu nas horas de amargura.

Natália Constâncio, colega, amiga e autora de B. I. dos Bichos em Mário de Carvalho, apenas, 2008

17/11/2012

Busquei num ermo Algânia feiticeira,
Que de abrasado feixe a par jazia;
Fui ver se atro conjuro me extorquia
Do laço antigo esta alma prisioneira.

Expus-lhe minha fé, minha cegueira,
Tracei meus males, e a rugosa estria
Cedendo à ternas mágoas que me ouvia,
Cuspiu três vezes na voraz fogueira.

Trémulas preces murmurou, e eu mudo;
Eis que as melenas, em sinal de espanto,
Eriça com semblante carrancudo.

«Meu rito é vão (me diz) e é vão teu pranto;
O poderoso Amor zomba de tudo,
Não vence encanto algum de Amor o encanto.»

Bocage
Documentário sobre a Árvore
O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite feia;
Mugindo sobre as rochas, que salteia,
O mar, em crespos montes levantado;

Desfeito em furacões o vento irado;
Pelos ares zunindo a solta areia;
O pássaro noturno, que vozeia
No agoireiro cipreste além pousado,

Formam quadro terrível, mas aceito,
Mas grato a olhos meus, grato à fereza
Do ciúme e saudade, a que ando afeito.

Quer no horror igualar-me a Natureza:
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
Há mais escuridade, há mais tristeza.

Bocage
Nos campos o vilão sem sustos passa,
Inquieto na corte o nobre mora;
O que é ser infeliz aquele que ignora,
Este encontra nas pompas a desgraça.

Aquele canta e ri; não se embaraça
Com essas coisas vãs que o mundo adora;
Este (oh, cega ambição!) mil vezes chora,
Porque não acha bem que o satisfaça.

Aquele dorme em paz no chão deitado,
Este, no ebúrneo leito precioso,
Nutre, exaspera velador cuidado.

Triste! Sai do palácio majestoso:
Se hás de ser cortesão, mas desgraçado,
Antes ser camponês e venturoso!

Bocage
Os princípios morais por que governo
Meu dócil coração, meu livre estado,
Prendem-me a ti com vínculo sagrado
De amor que passa o grau do amor fraterno.

És doce, és puro, és generoso, és terno;
Brilhas, campeias de virtude ornado
Num mundo de paixões contaminado,
Tão mau, tão feio, que parece Inferno.

Bocage (excerto)
Quantas vezes, Amor, me tens ferido!
Quantas vezes, Razão, me tens curado!
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

Tal que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do Fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido.

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da Existência à Morte!

Travam-se gosto e dor; sossego e lida...
É lei da Natureza, é lei da Sorte
Que seja o Mal e o Bem matiz da vida.

Bocage
Meu filho, não percas de vista a sensatez, conserva a reflexão: elas serão vida para ti e enfeite para o teu pescoço. Seguirás tranquilo o teu caminho, e os teus pés não tropeçarão. Descansarás sem medo; e quando te deitares, o teu sono será tranquilo. Não te assustarás com o terror imprevisto, nem com a desgraça que cai sobre os injustos.

Livro do Provérbios
A sabedoria do homem sagaz é discernir o seu próprio caminho.

Livro dos Provérbios

09/04/2012

Olhar o Douro VIII

Olhar o Douro VII

Olhar o Douro VI

Olhar o Douro V

Olhar o Douro IV

Olhar o Douro III

Olhar o Douro II

Olhar o Douro I

Proust e a leitura


“Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à primeira pureza. Com os livros, não há amabilidade. Estes amigos, se passarmos o serão com eles, é porque realmente temos vontade disso. A eles, pelo menos, muitas vezes só os deixamos a contragosto. E quando os deixamos, não temos nenhum desses pensamentos que estragam a amizade: - Que terão eles pensado de nós? – Não tivemos falta de tacto? – Teremos agradado? – nem o medo de sermos esquecidos por um deles. Todas estas agitações da amizade expiram no limiar dessa amizade pura e calma que é a leitura. Também não há deferência; só rimos com o que diz Molière na exacta medida em que lhe achamos graça; quando ele nos aborrece, não temos medo de mostrar um ar aborrecido, e quando estamos decididamente fartos de estar com ele, pomo-lo no seu lugar tão bruscamente como se ele não tivesse nem génio nem celebridade. A atmosfera desta pura amizade é o silêncio, mais do que a palavra.”

Marcel Proust. O Prazer da Leitura

01/03/2012

Ser linguagem e ser como a natureza

“Falta aos adultos, muitas vezes, intimidade com a linguagem e com a natureza; falta-lhes saber ser na linguagem e na natureza, ser linguagem e ser como a natureza. Os adultos, leitores ou não leitores, sempre aprenderam com as crianças a ver o mundo de maneira menos rígida e dogmática.”

Carlos Nogueira. “Natureza, infância e sociedade nos “Contos da Mata dos Medos”, de Álvaro Magalhães”, in Falas da Terra no Século XXI – What do we see green?, Lisboa, Esfera do Caos, 2011, p. 213)

24/02/2012

“Avó, não aprendi convosco tudo o que precisava de ser aprendido. Também vós tivestes dois Céus a dividir a vossa vida – um céu estrelado e um céu negro – mas, apesar de todas as aflições, conseguistes sempre passar para o lado mais brilhante. Mas, depois de tantos dias na obscuridade desta cela, como é que se foge do sofrimento e da morte? Dizei-me, avó, como?
(…)
O desejo ardente de ser abraçada por vós, como quando era pequena, assalta-me às vezes com tanta força que tenho de gemer. Em vez de chorar, esforço-me por imaginar o que me diríeis se os vossos lábios não estivessem selados. Não sei que palavras escolheríeis para me ajudar nestas circunstâncias, mas recordo-me também de me terdes falado de compaixão.
(…)
Mesmo que estejais morta, continuo a fruir da vossa presença nos meus sonhos. Por várias vezes, depois de adormecer, fui visitada pela vossa aparição. Vestida com uma longa camisa de linho branco e com os olhos brilhantes fixos em mim, ordenastes-me que preservasse a vida. Eu esforço-me, avó, e, por reconhecer como graças à compaixão recomeçastes a viver, deixando para trás as vossas amarguras, oiço-vos novamente. A vossa voz é límpida e forte e pouco importa que me chegue dos limbos da memória ou do outro mundo. O que importa é que não me sinto só nesta luta contra a solidão e contra o medo.”

Ana Cristina Silva. As Fogueiras da Inquisição


Régua fotografias


18662012


“Obrigado às orelhas do auditório atento, Calisto, em toada de Ezequiel, continuou:
- Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma imperial! Os costumes de nossos maiores são metidos a riso! As leis antigas, que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantas modernos que já não servem à humanidade, a qual, em consequência de ter mais sete séculos, se emancipou da tutela das leis. (…) Credite, posteri! – exclamou Calisto Elói com ênfase, nobilitando a postura.”

Camilo Castelo Branco. A Queda dum Anjo (1866)

“O Douro era o ventre materno que a aconchegava no colo quando sofria ou era feliz. D. Antónia sabia. Ninguém é feliz para sempre. A felicidade é uma pontuação, não é uma frase. E só a pode sentir no auge das emoções quem sofreu intensamente. A sua vida, a vida de todos os mortais, era feita desta transitoriedade onde o único valor absoluto é a morte.”

Francisco Moita Flores. A Fúria das Vinhas

11/01/2012

Hoje

Hoje, uma sinfonia de anjos iluminou a minha noite e tudo voltou ao seu lugar.



10/01/2012

“Naquele momento creio ter entendido: a cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida, um chão para a memória. Enrolei a linha, e regressei a casa, o poente avermelhando a paisagem e os flamingos trazendo o céu para junto da terra. Então, ganhei certeza: a cidade em que nasci estava destinada a crescer de mim. Um arame invisível nos prendia os pulsos, a mim e à minha terra natal.”
Mia Couto. “A cidade sonhada”, in Pensageiro Frequente




Cartografia interior


“O Homo sapiens sobreviveu porque nunca parou de viajar. Dispersou-se pelo planeta, inscreveu a sua pegada depois do último horizonte. Mesmo quando ficava, ele estava partindo para lugares que descobria dentro de si mesmo. (…)
E foi assim: o mais remoto deserto, a mais impenetrável floresta foram sendo povoados com os nossos fantasmas. E hoje todos os lugares começam por ser nomes, lendas, mitos, narrativas. Não existe geografia que nos seja exterior. Os lugares – por mais que nos sejam desconhecidos – já nos chegam vestidos com as nossas projeções imaginárias. O mundo já não vive fora de um mapa, não vive fora da nossa cartografia interior.”
Mia Couto. E se Obama fosse Africano? e outras interinvenções

Ligações

“Em tudo há uma hereditariedade dinâmica.” Ruben A.. Páginas (II)