Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


31/12/2013


Decidido a esquecer os mares de areia que nos rodeavam, o emir recolhia-se a uma tenda. Regressando aos tempos do seu reinado, passava horas a escrever por cima de um espelho de memórias. Nesses escritos, o brilho azul do rio Guadalquivir voltava para soletrar reflexos da sua alma. Como gelo a derreter, as recordações começavam finalmente a espalhar-se por entre as palavras. Apesar de nunca ter entrado na sua tenda nesses momentos privados, sei que assim acontecia, pois fui o único a ler o manuscrito.


Nasci com a vocação de poeta, mas o destino quis que eu administrasse um reino. (…) Com a poesia consegui transportar-me para o mundo mais vasto das almas. Os versos fizeram-me chegar mais perto das inquietações humanas, enquanto os deveres de monarca sempre me expulsaram da proximidade dos homens.



Coisa alguma iguala a beleza de um poema que revela o silêncio de uma voz em sofrimento. As poucas palavras de um verso, sendo as mesmas que usamos no dia a dia, consentem em transformar-se para simbolizar, com uma majestade inigualável, as mágoas e os amores do universo. Esse prodígio ninguém verdadeiramente sabe explicar, nem mesmo Zaydun, o meu mestre.

Ana Cristina Silva. Crónica do rei-poeta Al-Mut’Amid

21/05/2013

Há silêncios que por vezes encerram um sabor a resposta.

(...)

A única defesa para que o povo não pemita uma liderança nefasta é a educação.


Abraham Skorka, in Sobre o Céu e a Terra

Quociente Espiritual

            Antes falávamos de Q.I., o lendário Quociente Intelectual, depois veio o Q. E. que se converteu no novo mito do Quociente Emocional e agora já se fala de outro Q. E., o Espiritual.

            O conceito foi aplicado pela primeira vez pela filósofa americana Danah Zohar, que enuncia uma terceira forma de inteligência para além da intelectual e emocional. A acreditar em Zohar esta forma de inteligência permite compreender ainda melhor aquilo que é importante para nós: o sentido da vida, os nossos próprios valores, os valores dos outros e os grandes princípios humanos.

            No dia em que Daniel Goleman, o célebre psicólogo americano autor de Emotional Intelligence, publicou este best-seller mundial, ficou para sempre assente que existia uma forma de inteligência impossível de medir através dos testes convencionais de Q. I., mas que ultrapassava em larga escala esta definição clássica de inteligência.

            Goleman provou que, mais importante do que uma inteligência lógica e racional, é a inteligência afetiva e relacional. Aquela que nos ajuda a conhecermo-nos a nós próprios e a entender o mundo à nossa volta e nos abre um largo espectro de capacidades criativas. Segundo Goleman, um inteligente emocional é alguém que sabe lidar com o fracasso e o sucesso, que tem atenção aos outros, sabe ouvir, sabe amar, sabe dar e receber, tem iniciativa e é criativo. Em resumo, é alguém que vive bem consigo e com os outros e tem capacidade para fazer face às adversidades da vida porque sabe que tem dentro de si muitas das respostas às suas dúvidas.

            Um inteligente lógico, por outro lado, é alguém que tem uma capacidade superior para um ou vários desempenhos pessoais ou profissionais mas nem sempre tem atenção ao que se passa à sua volta e, acima de tudo, não tem a mais pálida noção da maneira como se gerem os sentimentos, os afetos e as emoções que, embora pareçam uma e a mesma coisa, são realidades completamente distintas.

            Um inteligente espiritual, na versão atualizada de Danah Zohar, autora de S. Q.: Connecting With Our Spiritual Intelligence (da Bloomsbury Publishing), é alguém que sabe dar uma dimensão a tudo o que diz, pensa e faz. Alguém que procura constantemente o sentido da vida, que tem fé mesmo quando não acredita em Deus, que aposta em viver cada dia melhor, que pratica o bem, que tem uma profunda noção ética da existência e, acima de tudo, que crê num tempo para além deste tempo.

            Conjugando o Quociente Espiritual com o Quociente Emocional chegamos a uma versão apurada de pessoas mais conscientes, mais humanas, mais solidárias e mais atentas a si próprias e aos outros. Pessoas que acreditam nos grandes valores humanos, que têm fé em Deus, nos homens, no Universo ou no que quer que seja mas sabem que a vida só faz sentido se soubermos qual é o nosso lugar no mundo e tivermos consciência de que o único caminho certo para lá chegar é o da ética.

Laurinda Alves. XIS Ideias para Pensar, Alfragide, Oficina do Livro, 2009

01/05/2013

Se há alguma coisa que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. (...)
No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade, nem há para nós - salvo se, desertos, não dançamos - conhecimento do grande frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas afinal não é senão a paródia íntima da verdade do que nos supomos.
Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como criaças que brincam a jogos sérios. (...)
E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo.
Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e porque é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou porque é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram - isso, por certo, eles mesmos não sabem.

Fernando Pessoa - Bernardo Soares. Livro do Desassossego

16/03/2013

A biblioteca protege da hostilidade exterior, filtra os ruídos do mundo, atenua o frio que reina em volta, mas confere, igualmente, uma sensação de omnipotência. Porque a biblioteca faz recuar as pobres capacidades humanas: ela é um concentrado de tempo e de espaço. Reúne nas suas prateleiras todos os estratos do passado Ali estão os séculos que nos precederam.

Jacques Bonnet. Bibliotecas Cheias de Fantasmas, Quetzal

21/01/2013

Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade
medindo o equilíbrio dos meus passos.

Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam,
e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força
perversa das coisas ata-me os braços e atira-me,
prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio
horror das voltas do caminho.


Sophia de Mello Breyner Andresen. Coral


17/01/2013


O renascer dos belos sentimentos
uma vez satisfeitas as necessidades básicas

«Para se exercerem as virtudes do espírito
é necessário um mínimo de conforto material.»
(Santo Agostinho)

     Esta pungente história se passou no meio de uma selva, nas areias de um deserto, num velho navio abandonado e sem rumo, em qualquer lugar em que há dificuldade de alimentação e o homem começa a sentir o remorder do antropo ou qualquer outra fagia que lhe espicace o estômago.
     Pois, sozinho e sem se alimentar há vários dias o homem vinha caminhando no vasto areal (ou selva, etc.), seguido apenas de seu fiel cachorro. Lá para as tantas lhe deu, porém, o espicaçar acima enunciado, a fome bateu-lhe às portas da barriga: «Pan, pan, pan, ó de casa!» Já batera antes, mas o homem fingia que não ouvia. Naquele momento, porém, não resistiu mais e atendeu à fome. Matou o cachorrinho, única coisa comível num raio de quilómetros. Matou-o, assou-o num fogo improvisado e comeu-o todo, todo, com uma fome canina (perdão!). Quando tinha acabado de comer todo o animal, sentou-se, plenamente satisfeito. E foi então que olhou em torno e começou a chorar: «Ai, ai, ai, soluçou, - pobre do Luizinho! Como ele adoraria roer esses ossos!».
     Moral: Quando eu tiver uma casa bem confortável escreverei um Tratado de Sociologia.

Millôr Fernandes. “Fábulas Fabulosas”, in PIF-PAF
Volto-me a estar calmo – olho para as coisas que não estão à minha volta e vejo-me a contar-lhe futuros num cenário perfeitamente rústico. Ela deixa-se levar pelo que não digo e fica pensativa ao ver-me tão calmo. O que terá acontecido?

As horas iguais vão passando num cadenciar sem fantasmas – de vez em quando sobem uns ruídos de silêncio que me atemorizam, são espiões de mim sem me poder estacionar. As estrelas da noite riem-se, a lua está lá por trás num coito de fase satélica, os morcegos gritam-se de meter medo e o azul carregado de imensidão absorve de mata-borrão toda a claridade. Não sei onde me hei-de meter. Deixo-me ficar calado para sentir o apunhalar das badaladas ao longe. Paro-me.

Vou mesmo a cair de sono encostar-me à parede para não deambular mais – aos poucos surpreendo-me ainda acordado para recordações que não me podem pertencer. Preciso de um estimulante. – Talvez a madrugada me dê um Te-Deum de luz. – Há um mundo que acaba nos sucos possíveis junto à grade da minha janela. Estou-me novamente só. Já nem me tenho a mim para falar – é o deserto total de lusco-fusco onde se ouve de tempos a tempos um estridente felino ou uma aurora boreal. As pessoas estão todas encaixadas nas casas e presas às suas camas – a vida parece um jogo de guaritas e eu um guarda-nocturno apaixonado. Quero sair do beco onde não estou e experimentar o fumo da fábrica que sobe pela manhãzinha. E Ela?

Ruben A. Caranguejo

05/01/2013


Num sábado, ao regressar de camioneta do quartel, vi de novo Ana Clara. Atravessava a rua lentamente na minha direção. Surpreendi-a a olhar-me por detrás de umas pálpebras que se baixavam numa expetativa hesitante, enquanto espiava alguém inverosímil trazido do passado por uma camioneta. Estabeleci rapidamente uma comparação discreta entre aquela rapariga que avançava na minha direção e a menina do andar abaixo com quem costumava brincar em criança. Os seus passos miúdos aproximavam-me de um tempo onde tudo era fluido, a minha mãe ainda não havia morrido, eu não tinha enfrentado as camaratas dos sucessivos colégios, e ela, a Ana Clara, ainda não havia mudado com os pais para uma outra cidade.

       Falámos durante alguns minutos, cada palavra detinha-se por uns instantes numa estranha intimidade de infância, interrompida por um luto e por uma mudança de cidade. A sua presença pareceu-me um indício objetivo de que seria possível isolar o instante onde as coisas poderiam ter sido diferentes. Era como se alguém me estivesse a dar uma segunda oportunidade para me redimir de algo indefinido. Era como se fosse possível interpolar o destino e desafiar a sua propensão para engendrar mais fatalidades. Convidei-a para sairmos nessa mesma noite, abrindo outra porta ao destino.


Deslocava as catástrofes para o coração dos meus quadros. Continuava a pintar. Precisava de ver os esboços a evoluir para figuras definitivas para acreditar na minha densidade. Mal o Francisco saía de manhã, dava algumas ordens à empregada e corria a refugiar-me no estúdio. As tintas arrastavam formas, alastravam por figuras à espera de se separarem de mim. O pincel criava, à volta de dois corpos, a saudade de um abraço, o pincel desvendava, no contorno de um corpo adormecido, o seu sonho. Esquecia-me que por detrás dos movimentos das minhas mãos existia uma mulher de roupão, hesitante e com medo de quase tudo que não tivesse a ver com as imagens de uma vida sonhada.


Em certos dias o analista sentia-se perdido. As sensações dos seus pacientes infiltravam-se e misturavam-se com tudo o que sempre sentira debaixo da pele. Os efeitos da absorção das vidas alheias faziam-se sentir como uma doença latente à espera de o encontrar vulnerável para se manifestar. A profissão exigia dele que escavasse um buraco oco na sua mente para depositar recordações, raivas e amores perdidos. Tinha feito a sua própria análise, aprendido com os melhores mestres de Paris. Sabia que as suas emoções deveriam escoar-se como água silenciosa para pôr em curso uma purgação. As suas emoções serviam para purgar e o que estava a ser purgado teria de deslizar sobre si como puro murmúrio.

       A maior parte dos casos eram difíceis. Não havia paciente que não proferisse uma meia mentira, que não forçasse a verdade, deformando-a por omissão ou por exagero. Tinha estudado. Era suposto compreender os fenómenos e as razões obscuras das reações humanas. Sabia que as pessoas transmitiam os seus pensamentos por símbolos, que escondiam as coisas essenciais através de uma linguagem cifrada, uma linguagem inconsciente. Os pacientes falavam, três palavras e dois sinais em lugar da única palavra que tinham receio de nomear. Depois rodeavam o que acabavam de dizer num enorme diálogo, um discurso de encantamento racional, que os seus mais profundos temores acreditavam poder manter indecifrável. Era o seu trabalho: lutar contra as ideias fixas, depurar o silêncio por detrás do enorme ruído das palavras. (…) Dessa maneira deixava espaço aos pacientes para se aproximarem de coisas primordiais, das quais se julgavam separados para sempre. (…) Se o seu trabalho ficasse bem feito, passados alguns anos, os pacientes percebiam que tinham vivido com quem está a sonhar a ausência de um sonho. Percebiam que durante muito tempo tinham visto sem nada ver, distinguindo as cores das coisas pelas que só existiam nos próprios olhos. Tinham escutado sem ouvir, a não ser as palavras que os seus lábios conheciam de cor.

 

Cristina Silva. À Meia-Luz

Cristina Silva

24-12-2012

Nos últimos cinco anos publicou cinco livros, o último dos quais em 2012, O Rei do Monte Brasil, muito apreciado pela crítica. Falamos de Cristina Silva, a quem temos o prazer de entrevistar.

Entre Mariana, Todas as Cartas, que é um romance de memórias do marialvismo, editado em 2002, e O Rei do Monte Brasil, onde explora a memória de Joaquim Mouzinho de Albuquerque e de Gungunhana, editado em 2012, passaram dez anos e foram editados nove livros, quase todos do género histórico. É a História que a arrasta para a ficção, Cristina Silva?

A História dá-me a intemporalidade dos conflitos humanos. Vou buscar à História figuras ou acontecimentos que ilustram a natureza humana, independentemente de um contexto histórico preciso. E acabo a escrever sempre sobre os mesmos temas: a violência, o amor ou o poder, os quais acabam por ser os grandes temas da literatura. A História dá-me o pretexto mas acho que escrevo romances mais centrados sobre a dimensão psicológica das vivências humanas do que sobre a ilustração de situações históricas.

O que é que realmente a motivou a escrever O Rei do Monte Brasil?

O poder e o confronto entre duas culturas. Interessou-me o processo de decadência de duas personagens, de culturas diferentes (europeia e portuguesa), que tinham em comum o facto de deterem o poder. E os efeitos da perca do poder. Depois interessa-me sempre a dimensão psicológica de personagens que tem um carácter mítico como é o caso destas duas personagens.

O Rei do Brasil é a história de duas civilizações que se confrontam. Ao ler a obra, porém, damos conta de uma certa intemporalidade. A essência e afirmação do poder são hoje muito diferentes do que eram no século XIX? Podemos estabelecer paralelismos?


O poder, a luta pelo poder, a manutenção do poder são uma espécie de afrodisíaco, tanto hoje como no séc. XIX. Há certas pessoas cuja principal motivação é a possibilidade de dominarem outras, mesmo que envolvam essa motivação com um discurso de boas intenções.

A Cristina Silva é uma escritora bastante atenta aos problemas sociais, de resto intervém com regularidade nas redes sociais. Será que há ainda Mouzinhos de Albuquerque e Gungunhanas na sociedade atual? Como vê a situação atual em Portugal?

A situação em Portugal é horrível. Do ponto de vista ideológico, este governo é um expoente trágico da estupidez neoliberal, venera os mercados, despreza o trabalho e as pessoas. Acho até que as determinações da troika são usadas para cumprir o seu próprio programa ideológico. Do ponto de vista da ação política levam a demagogia e a manipulação dos argumentos a um nível nunca visto. Têm mergulhado enormes faixas da população na miséria (é inadmissível que em Portugal do século XXI se passe fome ou que a resposta para isso seja o assistencialismo) com uma indiferença e arrogância absolutamente escandalosas. Hoje em dia o medo, a falta de esperança é o sentimento dominante em Portugal.

No meio de tantas amolgadelas, como encara a literatura nos tempos que correm? Alguma coisa a surpreendeu este ano?

Curiosamente, a literatura portuguesa está bem e recomenda-se com imensos novos autores de qualidade. A literatura é por excelência o espaço das histórias e da linguagem e essas duas dimensões definem até certo ponto a natureza humana. Por isso, no meio de todas as crises, a literatura irá sempre reescrever visões para cada um dos momentos históricos da humanidade. Este ano surpreendeu-me a facilidade como os pressupostos de uma sociedade podem ser tão facilmente destruídos em nome da ganância do capitalismo financeiro.

A Cristina Silva deseja, muito provavelmente, dedicar-se à escrita a tempo inteiro. Escreve por entretenimento, por vontade de contribuir por boas causas, por ambas, ou por outro motivo qualquer?

Eu acho que um autor deve conseguir agitar consciências. No entanto a principal motivação é a busca de um universo quase onírico que é a história, o apelo das personagens, o facto de se construir um edifício que faz sentido e que tem uma linguagem própria. As temáticas que me surgem acabam por andar à volta da violência, do amor e do poder porque como qualquer autor sofro daquela prepotência de quem gostaria de mudar o mundo.

Quem visita com regularidade o Portal da Literatura não nos perdoaria se não lhe pedíssemos para nos falar sobre o seu próximo livro: o décimo.

O meu próximo livro está pronto e em princípio sai em Setembro. Chama-se A segunda morte de Ana Karenina porque procura abordar todas as formas de adultério. O livro foca o horror das trincheiras na primeira guerra mundial, a questão da homossexualidade, a relação entre o teatro e vida e sobretudo é um ajuste de contas entre um homem e uma mulher.


Que quereis, real senhor?

Vossa alta senhoria?

 

El-rei estava na torre de menagem e, pensativamente, contemplava o seu reino de uma janela que sobre ele deitava.

A perder de vista, até às montanhas rosadas que sustinham o mar, era um tabuleiro revolto de leiras cultivadas, extensões sombreadas de bosques, sulcos de ravinas e montados, negrumes de matagais imensos e medonhos. Muito ao longe, a torre de um mosteiro, de ameias pontudas, impunha-se sobre agros elaborados e serenos. Mas a dois tiros de besta, para além do burgo de casebres de pedra mal amanhada, cobertos de colmos apodrecidos, já se eriçavam as urzes da coutada escura, abrindo a um matagal de floresta cerrada, onde, pelos dias eram senhores os ursos e, pelas noites, campeavam as encantações dos rochedos e das árvores, único desafio conhecido ao poder do rei, que não tinha leis nem validos que pudessem com ele.

Não se moveu el-rei quando Jano se anunciou e se ajoelhou a seus pés. Desejando, no íntimo, estava que o conde nunca mais chegasse. Não lhe deu para entrar logo no discurso que, desde há muito, vinha aparelhando, porventura inspirado pela contemplação dos seus domínios, em que o solar de Jano figurava um ponto mal discernível na paisagem.

Lento, cofiando a barba, acenou ao conde para que se levantasse. Encarou-o, infixamente, por um instante. Depois, inquiriu em voz incerta:

- Sabeis, conde, as agruras que sofre um rei para entregar em boa ordem, a quem Deus assinalar, a terra e o povo que confiados lhe foram pelo mesmo Deus?

- Eu, senhor, pobre de mim, pouco mais sei que de montarias e fossados, e o que baste dos Sagrados Textos para salvação de minha alma…

- Quando Nosso Senhor for servido convocar-me, será a infanta rainha e terá de se valer, sem meu conselho e amparo… ou o de outrem que lhe mereça estima e fé…

O rei suspirou, passou em frente do conde, que se mantinha de cabeça baixa, num silêncio embaraçado, e sentou-se a uma mesa de madeira tosca que ocupava o centro da quadra. Durante uns instantes, pareceu meditar, com a cabeça entre as mãos. Depois, num assomo de coragem, procurou, em voz já firmada:

- Que faríeis vós, conde, pelo vosso rei?

- Tudo o que tenho vos pertence, meu senhor, e se mais pudera acrescentar, depois dos trabalhos que passei, a bem de vosso nome e de vossa fortaleza…

O rei deu uma punhada com força na mesa e ergueu-se, ameaçador. Instintivamente, Jano recuou. “

 

Mário de Carvalho. “O Conde Jano”, in Quatrocentos Mil Sestércios Seguido de O Conde Jano, Lisboa, Caminho, 1991

 

 

Obrigada, querida amiga Natália, por esta sugestão de leitura, que me levou até às noites de luar no pátio da casa da minha avó, até às histórias que a sua voz tecia por entre os montes salpicados de brilhos ancestrais…