Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


21/05/2013

Há silêncios que por vezes encerram um sabor a resposta.

(...)

A única defesa para que o povo não pemita uma liderança nefasta é a educação.


Abraham Skorka, in Sobre o Céu e a Terra

Quociente Espiritual

            Antes falávamos de Q.I., o lendário Quociente Intelectual, depois veio o Q. E. que se converteu no novo mito do Quociente Emocional e agora já se fala de outro Q. E., o Espiritual.

            O conceito foi aplicado pela primeira vez pela filósofa americana Danah Zohar, que enuncia uma terceira forma de inteligência para além da intelectual e emocional. A acreditar em Zohar esta forma de inteligência permite compreender ainda melhor aquilo que é importante para nós: o sentido da vida, os nossos próprios valores, os valores dos outros e os grandes princípios humanos.

            No dia em que Daniel Goleman, o célebre psicólogo americano autor de Emotional Intelligence, publicou este best-seller mundial, ficou para sempre assente que existia uma forma de inteligência impossível de medir através dos testes convencionais de Q. I., mas que ultrapassava em larga escala esta definição clássica de inteligência.

            Goleman provou que, mais importante do que uma inteligência lógica e racional, é a inteligência afetiva e relacional. Aquela que nos ajuda a conhecermo-nos a nós próprios e a entender o mundo à nossa volta e nos abre um largo espectro de capacidades criativas. Segundo Goleman, um inteligente emocional é alguém que sabe lidar com o fracasso e o sucesso, que tem atenção aos outros, sabe ouvir, sabe amar, sabe dar e receber, tem iniciativa e é criativo. Em resumo, é alguém que vive bem consigo e com os outros e tem capacidade para fazer face às adversidades da vida porque sabe que tem dentro de si muitas das respostas às suas dúvidas.

            Um inteligente lógico, por outro lado, é alguém que tem uma capacidade superior para um ou vários desempenhos pessoais ou profissionais mas nem sempre tem atenção ao que se passa à sua volta e, acima de tudo, não tem a mais pálida noção da maneira como se gerem os sentimentos, os afetos e as emoções que, embora pareçam uma e a mesma coisa, são realidades completamente distintas.

            Um inteligente espiritual, na versão atualizada de Danah Zohar, autora de S. Q.: Connecting With Our Spiritual Intelligence (da Bloomsbury Publishing), é alguém que sabe dar uma dimensão a tudo o que diz, pensa e faz. Alguém que procura constantemente o sentido da vida, que tem fé mesmo quando não acredita em Deus, que aposta em viver cada dia melhor, que pratica o bem, que tem uma profunda noção ética da existência e, acima de tudo, que crê num tempo para além deste tempo.

            Conjugando o Quociente Espiritual com o Quociente Emocional chegamos a uma versão apurada de pessoas mais conscientes, mais humanas, mais solidárias e mais atentas a si próprias e aos outros. Pessoas que acreditam nos grandes valores humanos, que têm fé em Deus, nos homens, no Universo ou no que quer que seja mas sabem que a vida só faz sentido se soubermos qual é o nosso lugar no mundo e tivermos consciência de que o único caminho certo para lá chegar é o da ética.

Laurinda Alves. XIS Ideias para Pensar, Alfragide, Oficina do Livro, 2009

01/05/2013

Se há alguma coisa que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. (...)
No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade, nem há para nós - salvo se, desertos, não dançamos - conhecimento do grande frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas afinal não é senão a paródia íntima da verdade do que nos supomos.
Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como criaças que brincam a jogos sérios. (...)
E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo.
Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e porque é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou porque é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram - isso, por certo, eles mesmos não sabem.

Fernando Pessoa - Bernardo Soares. Livro do Desassossego