Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


22/10/2014

A mística do instante, de José Tolentino Mendonça. Prior Velho: Paulinas, [2014].


Cansaço
A verdade é que as nossas sociedades ocidentais estão a viver uma silenciosa mudança de paradigma: o excesso (de emoções, de informação, de expectativas, de solicitações…) está a atropelar a pessoa humana e a empurrá-la para um estado de fadiga, de onde é cada vez mais difícil retornar. O risco é o aprisionamento permanente nesse cansaço, como explicava profeticamente Fernando Pessoa: «Estou cansado, é claro./De que estou cansado não sei:/De nada me serviria sabê-lo/Pois o cansaço fica na mesma.»
Aproximação da natureza
Ao mesmo tempo que floresce a indústria dos perfumes, desaprendemos a distinguir o aroma das flores. Por mais que isso seja dez mil vezes mais prático, passar pela frutaria do inodoro hipermercado não é a mesma coisa que atravessar a catedral de aromas de um pomar. (…) A nossa distância da natureza é tão grande que deixamos de saber coisas tão elementares como caminhar descalço, dobrar-se na clareira e afastar mansamente as folhas da fonte para beber devagarinho, ou acariciar a vida desprotegida que se avizinha de nós. Assim nos tornamos os «analfabetos funcionais» que somos, resumia o cineasta Ingmar Bergman. Não será tempo de voltarmos aos sentidos? Não será esta uma oportunidade propícia para os revitalizarmos? Não é chegado o instante de compreender melhor aquilo que une sentidos e sentido?
Escutar
Escutamos com os nossos ouvidos os rumores do mundo externo, seja o ruído, as vozes, a música que nos consola. Contudo, quando falamos da escuta desinteressada do outro, sentimos que há um outro nível de audição que precisamos de aprender. Não há apenas uma escuta com os ouvidos, mas também um escutar com o coração, que mais não é do que uma escuta profunda, onde todos os sentidos nos são úteis.
Momentos da vida
Observamos muitas vezes em nós próprios um analfabetismo perante as expressões fundamentais da vida. Até termos certezas, até praticamos, até sabemos, mas há momentos da vida que nos deixam sem palavras, que nos fazem sentir sem apoio: uma doença, um incidente, uma crise, ou então uma grande alegria, um grande encontro… Em determinadas circunstâncias damos por nós num caminho que parece paralelo, porque a fé não tem suficiente capacidade de hospitalidade do que somos ou daquilo em que nos tornamos.
Repouso, libertação
O corpo deve encontrar-se não só na atividade, mas também no repouso, libertar-se da pressão do imediato, do peso das solicitações, abrindo-se em certos instantes sem porquê, como o mistério dizia que florescem as rosas. Encontraremos então, finalmente, tempo para contemplar, para nos deliciarmos com a audição e o sabor, para sentir o perfume daquilo que passa, para tocar, ou quase tocar, aquilo que permanece.
Esperança
A esperança mantém-nos vivos. Não nos permite viver macerados pelo desânimo, absorvidos pela desilusão, derrubados pelas forças da morte. Compreender que a esperança floresce no instante é experimentar o perfume do eterno.
A Vida que se escreve com maiúscula, aquela que é digna desse nome, não é outra coisa que uma operação esperançosa, e de alto risco na maior parte dos casos. Sem esperança, só notamos a pedra, o caráter tosco, o obstáculo fatigante e irresolúvel. É a esperança que entreabre, que faz ver para lá das duras condições a riqueza das possibilidades quinda escondidas. A esperança é capaz de dialogar com o futuro e de o aproximar. A nossa existência, do princípio ao fim, é uma profissão de fé na esperança. (…) A semente para frutificar precisa da mão que a atire para mais longe. O barco precisa de quem, enamorado pela viagem, seja capaz de o ajudar a deixar a quietude ilusória do porto. A página precisa de quem arrisque contar uma história. Nas coisas mais pequenas como nas grandes encontramos o mesmo chamamento à esperança.
Instante
Se observarmos bem, somos continuamente despojados do passado e, por mais que façamos, não conseguimos antecipar do futuro qualquer parcela, por ínfima que seja. Só nos resta o instante, só instante nos pertence. (…) É a frágil ponte de corda que une o tempo à promessa.
Solidão hoje
A cultura contemporânea deixou de nos preparar para a solidão. Na maior parte das vezes é uma aprendizagem que temos de fazer em cima dos próprios acontecimentos, ou na sua dolorosa ressaca, e de forma muito desacompanhada. (…) A amizade e o amor são formas de codividir, diminuir, dar serenidade ou potenciar criativamente a solidão, mas o assobio ininterrupto da solidão continuará a fazer-se ouvir no abraço redondo dos amantes ou na ronda magnífica dos amigos. Recordar-se disso é humanizar o modo como julgamos e tocamos a realidade.
Paciência
Eu diria que o exercício da paciência começa pela aceitação esperançosa da vida. Ela coloca-nos face a face com a vulnerabilidade, aquela própria e a dos outros. (…) Não se deve confundir paciência com indecisão, passividade, escassa coragem. Pelo contrário: é a audácia de não se deixar instrumentalizar pela precipitação ou bloquear pelo temor, investindo ativamente o nosso tempo na gestão das expressões complexas e inesperadas da vida, mas fazendo-o com sabedoria, serenidade e atitude construtiva. Gosto muito do modo como São Tomás de Aquino explica a paciência. Diz ele: a paciência é a capacidade de não desesperar.
Escuta
 Numa cultura de avalanche como a nossa, a verdadeira escuta só se pode configurar como um recuo crítico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto parecem aprisionar-nos. Experimentamos como os modelos de vida impostos são atordoantes. A compensação para as nossas existências extenuadas é o entretenimento. Porém, a própria palavra «entreter» é reveladora: entre-ter, ter ou manter entre, numa espécie de suspensão que nos captura. E a dada altura, já não vivemos em lado nenhum, numa no man’s land que é ao mesmo tempo a nossa morada e o nosso exílio. A arte da escuta é, por isso, um exercício de resistência. Ela estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa dos contactos, à enxurrada que a telenovelização do quotidiano (seja ele político, económico ou cultural) comporta. A escuta constitui, por vezes, uma cesura, um corte simbólico, uma recusa, uma deslocação. Uma coisa é certa: sem ela, rapidamente a nossa vida se torna invadida, colonizada, uma vida que não nos pertence.
Viagem
A geografia tende inevitavelmente a tornar-se metafórica e ninguém que caminhe sobre o mundo não acaba, a certo momento, por se dar conta, talvez com alegria, talvez com dor, que vem caminhando sobretudo dentro de si. (…)
Desenganem-se os que têm as viagens apenas por exteriores. Não é simplesmente a cartografia da paisagem que os homens palmilham. Deslocar-se, queira-se ou não, implica uma mudança de posição; uma alteração ao ângulo habitual; uma exposição ao diverso; uma maturação do próprio olhar; um reconhecimento de que alguma coisa nos falta; uma adaptação a realidades, tempos o linguagens, ou a descoberta de uma incapacidade para tal; um confronto inexcusável; um diálogo tenso ou deslumbrado que nos deixa, necessariamente, com uma tarefa ulterior. A experiência da viagem é a experiência da fronteira e do aberto, de que cada um de nós precisa para ser.
Tempo
O ponto de sabedoria é aceitar que o tempo não estica, que ele é incrivelmente breve e que, por isso, temos de vivê-lo com o equilíbrio possível. Não nos podemos iludir com a lógica das compensações: que o tempo que roubamos, por exemplo, às pessoas que amamos, procuraremos devolvê-lo de outra maneira, organizando um programa ou comprando-lhes isto e aquilo; ou o que retiramos ao repouso e à contemplação, vamos tentar compensar numas férias extravagantes. A gestão do tempo é uma aprendizagem que, como indivíduos e como sociedade, precisamos de fazer.
Nós e os outros
A nossa história começa antes de nós e persistirá depois. Somos o resultado de uma cadeia inumerável de encontros, de gestos, boas vontades, sementeiras, afagos, afetos. Colhemos inspiração e sentido de vidas que não são nossas, mas que se inclinam pacientemente para nós, iluminando-nos, fundando-nos na confiança.



15/08/2014

On Angels

All was taken away from you: white dresses,
wings, even existence.
Yet I believe you,
messengers.

There, where the world is turned inside out,
a heavy fabric embroidered with stars and beasts,
you stroll, inspecting the trustworthy seams.

Short is your stay here:
now and then at a matinal hour, if the sky is clear,
in a melody repeated by a bird,
or in the smell of apples at close of day
when the light makes the orchards magic.

They say somebody has invented you
but to me this does not sound convincing
for the humans invented themselves as well.

The voice - no doubt it is a valid proof,
as it can belong only to radiant creatures,
weightless and winged (after all, why not?)
girdled with the lightning.

I have heard thar voice many a time when asleep
and, what is strange, I understood more or less
an order or an appeal in an unearthly tongue:

day draws near
another one
do what you can.

Czeslaw Milosz
Sons e palavras encantatórios. Tenho saudades de falar em inglês, da beleza de um poema dito em inglês. Descobri este texto num folheto da Expo'98.

ANOTHER


If it is sweet beneath a pleasant sky
In early summer, to watch the morning dress
In fleeting flowers, and watch a stream caress
Green banks and lick its sands, as it slips by:

If it is sweet to hear from restless lovers,

With verses modulating, and their ardors,
Among the deep and shady archard's odors,
Their innocent defiance of all others:

Is it is sweet when sea and sky are seen

Dyed indigo by Love's beloved rhymes
that waken hearts and turn rich meadows green:

Tis sweeter yet to see you, vanquished by my cries,

To give myself unto your swooning eyes,
Oh Death, love's death, far better than life's lies.

Manuel Maria Barbosa du Bocage

Trad. de Alexis Levitin
Mulheres timorenses na UNAMET

Levantam-se cedo e começam a lida

queimaram-lhes a casa mas elas próprias são a casa
lavam os filhos e varrem o chão
contra a morte elas celebram os quotidianos rituais da vida
e em cada gesto refazem o lar ausente
e em cada uma renasce a terra destruída.

Timor é onde elas estão

são elas o sol nascente.

Manuel Alegre
Março-29-53. O Diário é uma forma patológica de comportamento. Os seus autores não são doentes de nenhuma doença que possa classificar-se. São doentes de si mesmos. Eles reinventam ao mesmo tempo a doença, o médico e o remédio. Um Diário é a fabricação contínua dessa febre artificial, o mais injustificável dos processos literários de comunicar consigo próprio ou com o próximo.
O ato de fazer diário não tem defesa possível a não ser para quem tiver a coragem pública de Montaigne de se confessar mais interessante que o resto do Universo. Como processo de autoconhecimento é ilusório. É o ato de escrever um diário que é mais revelador sobre a alma de quem o escreve do que tudo quanto nele se escreve. O único tipo de Diário justificável seria de caráter puramente utilitário, eu quero dizer de utilidade imediata e pessoal, no género de um livro de cozinha onde se registem receitas úteis...
A grande justificação moral do Diário é a de ser uma tentativa de esclarecimento total do Homem através da humanidade de um homem. Esta vontade de sinceridade arrasta-se de Montaigne a Rousseau, de Rousseau a Gide; mas é uma falsíssima sinceridade. O diário é tanto mais sincero (ou tem mais possibilidades) quanto o seu autor mantenha consigo mesmo a relação de um público com um desconhecido absoluto. Um literato que escreve um diário só pode fazer um diário literário. Ele eliminou, escolheu, escolheu-se, pensou. A pose é absolutamente flagrante quando o autor exprime a vontade absurda de não posar. Escrever é já posar mesmo quando a intenção é simplesmente objetiva: escrever um diário é posar permanentemente para si mesmo.
(...)
Que vale passarmos a vida a construirmo-nos para nós mesmos como isentos, puros, excecionais, generosos, humildes quando denunciamos uma avidez de nós próprios ignorada ou um tom de voz, um orgulho insuspeitado que afronta os céus? Porquê testemunhar da nossa radical solidão? Talvez seja radical sim, mas a desse que se sentou ao meu lado no elétrico e que quis talvez dizer-me alguma coisa que jamais me diria?
Solitários esses que têm cinco, dez volumes para escarrar na face do público a sua solidão não soltária, a sua divina solidão?
MERDA.

Vence, 3 de fevereiro 91. De regresso de um passeio breve abro a cancela do jardim e deparo comigo absorto diante do cipreste que projeta a magra sombra no branco da casa. Assim, distraído de mim, no intervalo de nada, descobri num segundo que são as coisas que nos amam e não o contrário. Em silêncio amparam-nos por existir sem ter existência e esta calada vida é um olhar pousado sobre nós. Um aceno de olhos, um abraço sem mãos. De quem?

Guarda, outubro de 95. Quem não quer ser homenageado não aceita homenagens. Eu não tive a coragem de a não aceitar. Parecia-me um orgulho maior do que recebê-la como dádiva dos outros. Mas sei que a pagarei cara. Quando a revista «Prelo» me consagrou um número especial [Maio de 1984] fiquei seis meses sem poder escrever uma linha. Talvez mais vivo para outros. Mas de luto por mim mesmo.


Eduardo Lourenço
Público Magazine, 21 abril 1996

07/08/2014

Nas caixas de lápis guardam os meninos os seus sonhos.

Ramón Gómez de la Serna. Greguerías (trad. de Jorge Silva Melo)


Perdoa e ganharás o amor
um outro realce, outra beleza.
é que se punires será o rancor
a tomar mais evidência e mais clareza.

Ibn 'Ammâr. Ibn 'Ammar Al Andalusí: drama de um poeta (trad. de Adalberto Alves e Hamdane Hadjadji)
Nas vielas os homens correm para cá, para lá,
pisando a sombra das laranjeiras.
Também os meus pensamentos rodopiam
quando não te vejo.

Mikata (séc. VII). Rosa do mundo: 2001 poemas para o futuro
Procuro na morte a vida,
saúde na enfermidade,
na cadeia a liberdade,
no mui fechado saída
e no traidor lealdade.
Mas minha sorte, de quem 
jamais espero algum bem,
com o céu estab'leceu
que, se o impossível peço eu,
nem o possível me deem.

Miguel de Cervantes. Antologia da poesia espanhola «Siglo de Oro»: Renascimento (trad. de José Bento)




Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera

Gastão Cruz. Rua de Portugal


Estamos sós com tudo o que amamos.

Novalis. Fragmentos


Nada te inquiete,
nada te assuste;
pois tudo passa,
Deus nunca muda.
A paciência
alcança tudo.
Quem Deus possui
nada lhe falta.
Só Deus nos basta.

Santa Teresa de Ávila. Seta de fogo
Primavera

O vento primaveril foi escultor
no pomar, e pelo seu engenho
cada árvore parece uma boneca.
O campo cobriu-se de um pano chinês:
os brincos das árvores são um fio de pérolas.
Como as belas mulheres por trás da cortina,
vê como o faceiro sol
ora sai da nuvem, ora volta a procurá-la.
E a alta montanha tira da cabeça
o diadema de prata; o sol brilha de novo;
o seu rosto é de seda; e o seu seio, de almíscar.

Onçori (séc. XI). Rosa do mundo: 2001 poemas para o futuro (trad. de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)
Por ti cheguei e parto.
A minha casa é onde estás.

José Agostinho Baptista. Biografia
Um relâmpago fugitivo é a vida,
que mal dá tempo de a sentirmos passar.
Imutável é a face da terra, e a do céu;
mas quão rápido muda o nosso próprio rosto!

Li Tai Po. Mesa de amigos


Dominar a natureza mas dominar primeiro o instinto de dominar a natureza.
dominar a Natureza mas dominar depois o instinto de dominar a Natureza.
Não dominar a Natureza.

Gonçalo M. Tavares. Livro da dança
As casas

As casas habitadas são belas
se parecem ainda uma casa vazia
Sem a pretensão de ocupá-las
tornam-se ténues disposições
os sinais da nossa presença:
um livro
a roupa que chegou da lavandaria
por arrumar em cima da cama
o modo como toda a tarde a luz foi
entregue ao seu silêncio

Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa

José Tolentino de Mendonça. De igual para igual



Arnold Böckin

A física desta pedra
O nome daquela árvore
A nuvem e o mar
O que a palavra diz
A hora de nascer
Enfim o mundo e eu
Porquê?

António Dacosta. A cal dos muros
Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia que caminho tomar
Mas o vento soprava forte,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Alberto Caeiro
Poemário Assírio & Alvim (8 de dezembro de 2003, dia de Lua Cheia)

04/08/2014

O ditado dizia «grão a grão enche a galinha o papo». Hoje, temos a vergonha do pequeno grão e temos tanta pressa e tanta ambição que já não há galinhas, só há pavões. Reina a expectativa do «depressa e muito». Pagaremos mais tarde esta ilusão de grandeza e velocidade. A vida nos dirá que o depressa sai mal e o muito só é muito para muito poucos.

Mia Couto. E se Obama fosse africano? e outras interinvenções
A história de cada um de nós é a de um indivíduo a caminho de ser pessoa. O que nos faz ser pessoa não é o Bilhete de Identidade. O que nos faz pessoas é o modo como pensamos, como sonhamos, como somos outros. Estamos, enfim, falando de cidadania, da possibilidade de sermos únicos e irrepetíveis, da habilidade de sermos felizes.
Um dos problemas do nosso tempo é que perdemos a capacidade de fazermos as perguntas que são importantes. A escola nos ensinou apenas a dar respostas. A vida nos aconselha a que fiquemos quietos e calados. Uma das perguntas que pode ser importante é esta: O que nos dificulta o caminho para transitarmos de indivíduos para pessoas? O que precisamos para sermos pessoas a tempo inteiro?

Mia Couto. E se Obama fosse africano? e outras interinvenções

25/07/2014


Henri Rousseau


 Nunca Alberto vira, no mundo já trilhado, maior fúria dos elementos. Sob a rajada, a selva cada vez arfava mais, rangia por toda a parte e dir-se-ia prestes a destruir-se no intenso clamor. Era fantástica e alucinante no seu sinistro ulular, a que só punha breve pausa o estampido do trovão, que abalava toda a terra. Depois, de algures, reboando com secura, chegava o alarido forte de grande tronco rasgado de alto a baixo pelo rio. Era um estralejar nervoso que aquietava em pânico todos quantos o ouviam. Os trovões sucediam-se e os relâmpagos entrelaçavam-se numa doida apoteose de mundo falido. E, de quando em quando, vinha de longe, surdamente, a nota grave de colosso que o vendaval tombava, na barulheira, na barulheira da selva endemoniada.
          Caíram, depois, uns pingos grossos e logo a bátega desabou. Firmino, olho à direita, olho à esquerda, descobriu, por fim, abrigo e foi encalhar a piroga entre dois velhos troncos. Lá estava, mais além, a sapopema entrevista.
- Depressa, seu Alberto, senão fica mesmo como um pinto!


Ferreira de Castro. A selva, Porto, Civilização, [1930], pp. 192 e 193


Descrição impressionante de uma tempestade na selva... Ferreira de Castro maneja os verbos e os adjetivos de forma expressiva e magistral.

02/07/2014



Li finalmente Quem me dera ser onda, do escritor angolano  Manuel Rui, e descobri uma história divertida na qual tudo gira em torno de um elemento alegórico: um porco, ou melhor, um leitão, chamado, imagine-se, Carnaval da Vitória.
Mais estranho do que o seu nome é o facto de Carnaval da Vitória morar num apartamento de um sétimo andar. Enquanto o dono da casa pretendia engordá-lo para servir de refeição, a mulher e, sobretudo, os filhos tratavam-no com o desvelo de um membro da família. A chegada deste novo morador cria um ambiente subversivo e sugere um «mundo às avessas», modificando a maneira de viver dos que o rodeiam e dando origem a cenas engraçadas. As crianças escondem-no de um fiscal; levam-no para a escola e transformam-no no tema central das suas composições, pondo “uma escola inteira a dissertar sobre um porco”, em vez de exercitarem a criatividade escrevendo sobre temas populares e valores nacionais (p. 46); o porco é um ouvinte assíduo, embora forçado, de rádio, evitando-se, assim, que “fale”; graças a Carnaval da Vitória e a um bem pensado estratagema das crianças, a família passa a comer peixe e carne de porco… Símbolo da revolução social e da amizade entre crianças, é também através do animal que se critica um sistema educativo alienado e a hipocrisia humana. Tudo apimentado por um sentido de humor e uma fina ironia que perpassam, do princípio ao fim, este livro, justo vencedor do Prémio Nacional Agostinho Neto.



Pergunto-me o que aconteceria se eu confessasse tudo. O que é que aconteceria se eu gritasse a verdade ao mundo não deixando escapar nenhuma palavra de sinceridade?
 (...)
Ela, como aliás a maior parte das pessoas, gosta de saber pouco. Prefere usar as representações de si própria para aferir as certezas pela medida única das aparências. Percebo que existem limites para a queda das máscaras. Evita-se os acontecimentos terríveis, pratica-se a comunicação hipócrita respirada boca a boca com palavras encobertas.

Cristina Silva. A mulher transparente

28/06/2014

Procuro-te no corredor onde se ouve sempre o tiquetaque do pêndulo do relógio, de quarto em quarto de hora soam badaladas que são a música da casa, talvez o próprio tempo que nela se condensou, pode tocar-se o tempo e ouvi-lo, eu sei que pode.
Há retratos a óleo, cheira a alfazema, madeira velha, gente que já não há, oiço o tilintar das chaves que minha tia traz à cintura e são como um ceptro, um símbolo do seu poder dentro da casa. Abro a porta da sala de visitas, do lado esquerdo: mais quadros e sacos de alfazema sobre as mesas, encosto o rosto à porta envidraçada que dá para o varandim onde todas as tardes de julho aparecias à hora do chá. Passo a mão pelo piano. A tia sentava-se e tocava um tango argentino, sempre o mesmo, tocava-o com tal intensidade que muitas vezes me perguntei se não seria a sua música interior, a sua paixão secreta, o seu tango dançado de uma só vez.
É de novo julho, a tia está sentada ao piano, enlaço-te, encaixamos um no outro, forma com forma, tudo se ajusta. Os nossos corpos têm a mesma batida, o mesmo ritmo, o mesmo tango por dentro. Alma com alma, diria o padre.


Manuel Alegre. A terceira rosa
Um nome escrito no tempo

Teu nome antes mesmo do caderno
Teu nome na negra lousa eu o escrevi
Eu o escrevi e apaguei e se perdeu e renasceu
Teu nome efémero teu nome eterno
Teu nome onde eras tu mesmo sem ti
Teu nome eu o escrevi eu o perdi
Teu nome que saiu das folhas para o mundo
Apesar da tinta que lentamente esmaeceu
Teu nome eu o escrevi e se inscreveu
De tal modo dentro de mim tão fundo
Que já não sei se és tu ou eu.

Teu nome em toda a parte eu o escrevi
Nas árvores nas águas nas areias
No caderno e na lousa o andei compondo
No sangue que circula em minhas veias
Teu nome eu o perdi eu o perdi
E quando chamo eu mesmo é que respondo.


Manuel Alegre. Livro do português errante
Um perfume de nardo

Em verdade te digo: Não
espero a eternidade. E sei
que nenhum verso vence a morte.

Procuro apenas um sinal
um ritmo que me restitua
a impercetível respiração da terra.

Talvez os cabelos de Maria
irmã de Marta
a enxugar-me os pés.

Porque todos os poemas são mortais
e o que fica é talvez
um perfume de nardo. E nada mais.


Manuel Alegre. Livro do português errante
Poema do português errante

Por um caminho à noite caminhava
caminhava de noite sem sentido
pela própria cadência era levado
caminhava movido por um ritmo
a música interior que mais ninguém
ouvia. Caminhava de noite e não havia
sequer o rumo e o sentido. Nem
a rosa dos ventos e os pontos cardeais
nem Cruzeiro do Sul nem bússola nem estrela.
Caminhava por caminhar. Apenas
por um íntimo impulso um movimento
irreprimível do seu próprio pensamento.
Ou nem sequer. Talvez não fosse
senão a própria marcha. Um corpo
avante. Um corpo em seu mistério caminhante
não mais que um corpo em marcha no caminho
ninguém sabe ao certo se perdido.
E só se ouvia o som do seu arfar
e não havia aliás outro sentido
senão o de caminhar por caminhar.


Manuel Alegre. Livro do português errante

25/06/2014

Tu

Com a noite dos teus olhos
escusava lua e estrelas.

Com a fonte da tua boca
não teria mais sede.

Com a raiz do teu ombro
para quê teto ou abrigo?

Só a luz me faria falta
para poder olhar-te.


Luísa Dacosta. A maresia e o sargaço dos dias
Fatalidade

Não sei tecer
senão espumas,
nuvens
e brumas.
Coisas breves,
leves,
que o vento desfaz.

Como prender-te
em teia tão frágil?


Luísa Dacosta. A maresia e o sargaço dos dias
Busca

Procuro a palavra,
a de sílabas de luz,
que inteira nos revelaria.
Impossivelmente, busco
a nunca encontrada.
Embrionária e prisioneira,
dorme para todo o sempre
no seu ovo de silêncio.


Luísa Dacosta. A maresia e o sargaço dos dias

22/06/2014

Tal como o ferro enferruja com o desuso e a água estagnada apodrece ou gela quando esfria, também o vosso intelecto perde a não ser que lhe deis uso.

Leonardo da Vinci
A paciência serve-nos contra os insultos tal como o vestuário nos protege do frio. Porque se vestis mais roupas à medida que o frio aumenta, o frio não vos afetará; aumentai, da mesma forma, a vossa paciência contra grandes injúrias e estas deixarão de vos atormentar o espírito.

Leonardo da Vinci

11/06/2014

Quais são os pormenores? Qual é a intriga? Que se passa na curva do capítulo IX para o capítulo X? Alguns [leitores] são capazes de conservar todas estas minúcias no primeiro plano da sua memória; é a sua maneira de honrar uma obra-prima; mas há outra maneira de o fazer, a do espírito que se liberta, depois de cada leitura, da recordação dos pormenores para guardar apenas, mais amorosamente talvez, uma impressão do conjunto, uma sensação de personalidade, de estilo e de ritmo, de emoção: essa característica do ser, da vida profunda, que marca um grande livro ou um ser humano com o selo da sua originalidade.

Charles Morgan

04/06/2014

Deliciei-me outro dia com este jogo de palavras, olhos e “coraçom”. Na poesia trovadoresca estão as nossas raízes, o nosso início. Para ler devagar.

Queixei-m'eu destes olhos meus;
mais ora, se Deus mi perdom!,
quero-lhis bem de coraçom,
e des oimais quer'amar Deus;
       ca mi mostrou quem hoj'eu vi:
       ai! que parecer hoj'eu vi!

Sempre m'eu d'Amor queixarei,
ca sempre mi dele mal vem;
mais os meus olhos quer'eu bem,
e já sempre Deus amarei;
       ca mi mostrou quem hoj'eu vi:
       ai! que parecer hoj'eu vi!

E mui gram queixum'hei d'Amor,
ca sempre mi coita sol dar;
mais os meus olhos quer'amar,
e quer'amar Nostro Senhor;
       ca mi mostrou quem hoj'eu vi:
       ai! que parecer hoj'eu vi!

E se cedo nom vir quem vi,
cedo morrerei por quem vi.


João Garcia de Guilhade
MAR NOSSO

Emocionadamente
Te reencontro
                          hoje
                                  e
                          sempre

Mar nosso
que estás na terra
                        nesta minha
                        tua nossa
                        terra
e és sempre a mesma bênção
de água
a mesma mágoa
doce
         o mesmo indizível júbilo.

Teresa Rita Lopes. O sul dos meus sonhos



ETERNA INDEFINIÇÃO DE TUDO

As hortênsias vão mudando de cor com a idade.
Como as pessoas.
                                Quando desabrocham
as inúmeras pétalas do novelo são rosadas
depois ficam azuis depois lilases
                                                          parece que o lilás
é a cor mais espiritual.
                                        Gosto mais delas assim
furta-cores.
                     As cores intensas sem cambiantes
cansam-me.
                     Gosto delas indecisas
                                                           Sorrindo
para a eterna indefinição de tudo.



Teresa Rita Lopes. O sul dos meus sonhos


Muito obrigada, queridas, pela magia que me trouxeram neste livro de poesia. Mesmo imóvel neste sofá preto, sonho e fujo para mundos coloridos.

O JARDIM QUE OS DEUSES ME DERAM

Todas as manhãs (ou quase) saio para o campo
mexo na terra abro tocas para novas raízes
assisto ao parto duma folha ou duma flor
(ao nascer todas as vidas são o mesmo enternecedor
milagre)
               e isto sem sair da minha varanda
estuante de verde
                                   de vasos de todos os tamanhos
de plantas de todas as cores e feitios.
Este o jardim que os deuses me deram.
                                                                  Se fosse maior
e a sério se calhar não conseguia cuidar dele.
Fecho os olhos e estou na selva. Oiço os pássaros
inúmeros.
                   Cheiro a seiva na brisa.
                                                           O meu jardim
é pequeno como a minha vida. Como todas as vidas.
Também a Terra não é mais do que um quintal
do Universo.
                      Que digo eu? Que um canteiro.
Ou melhor: um pequeno vaso.
                                                       Tamanho de um dedal.
Mas qual do Universo! De uma galáxia
                                                                          se tanto.
Ou talvez só do nosso sistema solar.
                                                           Somos tão ínfimos
que só podemos amar coisas à nossa dimensão.
                                                                                   Por isso
é que se Deus houvesse o não poderíamos amar.
Só deuses pouco maiores do que nós. Ou Jesus. Ou Buda.
Ou o pequenino ser amado em que ocasionalmente
a divindade encarna.
                                      Tão inexplicavelmente.



Teresa Rita Lopes. O sul dos meus sonhos





20/05/2014


         
           
             
                Crianas
             
             
             
                Crianças


Carlos Alberto Fernandes
             
           
         
       

http://olhares.sapo.pt/
Porque há que imaginar o impossível para resolver o quotidiano. A literatura tem do dom de ir mais além do que aquilo que se observa a olho nu. Mostra tudo o que a ciência nos explicou e vai mais além, resgatando também tudo o que a ciência despreza ou não consegue explicar. Permite-nos ver as coisas por dentro e por trás, inclusive apresenta-nos o mundo com aspetos diferentes dos conhecidos e assim obriga-nos a refletir e ensina-nos o caminho do pensamento e da reflexão.
Há que ler para tornar o nosso lar maior, a nossa linguagem, a nossa memória, o nosso pensamento, a nossa imaginação e ter mais oportunidades de superar o cerco sanitário da ignorância.

Rodolfo Castro. A intuição leitora, a intenção narrativa