Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


15/08/2014

On Angels

All was taken away from you: white dresses,
wings, even existence.
Yet I believe you,
messengers.

There, where the world is turned inside out,
a heavy fabric embroidered with stars and beasts,
you stroll, inspecting the trustworthy seams.

Short is your stay here:
now and then at a matinal hour, if the sky is clear,
in a melody repeated by a bird,
or in the smell of apples at close of day
when the light makes the orchards magic.

They say somebody has invented you
but to me this does not sound convincing
for the humans invented themselves as well.

The voice - no doubt it is a valid proof,
as it can belong only to radiant creatures,
weightless and winged (after all, why not?)
girdled with the lightning.

I have heard thar voice many a time when asleep
and, what is strange, I understood more or less
an order or an appeal in an unearthly tongue:

day draws near
another one
do what you can.

Czeslaw Milosz
Sons e palavras encantatórios. Tenho saudades de falar em inglês, da beleza de um poema dito em inglês. Descobri este texto num folheto da Expo'98.

ANOTHER


If it is sweet beneath a pleasant sky
In early summer, to watch the morning dress
In fleeting flowers, and watch a stream caress
Green banks and lick its sands, as it slips by:

If it is sweet to hear from restless lovers,

With verses modulating, and their ardors,
Among the deep and shady archard's odors,
Their innocent defiance of all others:

Is it is sweet when sea and sky are seen

Dyed indigo by Love's beloved rhymes
that waken hearts and turn rich meadows green:

Tis sweeter yet to see you, vanquished by my cries,

To give myself unto your swooning eyes,
Oh Death, love's death, far better than life's lies.

Manuel Maria Barbosa du Bocage

Trad. de Alexis Levitin
Mulheres timorenses na UNAMET

Levantam-se cedo e começam a lida

queimaram-lhes a casa mas elas próprias são a casa
lavam os filhos e varrem o chão
contra a morte elas celebram os quotidianos rituais da vida
e em cada gesto refazem o lar ausente
e em cada uma renasce a terra destruída.

Timor é onde elas estão

são elas o sol nascente.

Manuel Alegre
Março-29-53. O Diário é uma forma patológica de comportamento. Os seus autores não são doentes de nenhuma doença que possa classificar-se. São doentes de si mesmos. Eles reinventam ao mesmo tempo a doença, o médico e o remédio. Um Diário é a fabricação contínua dessa febre artificial, o mais injustificável dos processos literários de comunicar consigo próprio ou com o próximo.
O ato de fazer diário não tem defesa possível a não ser para quem tiver a coragem pública de Montaigne de se confessar mais interessante que o resto do Universo. Como processo de autoconhecimento é ilusório. É o ato de escrever um diário que é mais revelador sobre a alma de quem o escreve do que tudo quanto nele se escreve. O único tipo de Diário justificável seria de caráter puramente utilitário, eu quero dizer de utilidade imediata e pessoal, no género de um livro de cozinha onde se registem receitas úteis...
A grande justificação moral do Diário é a de ser uma tentativa de esclarecimento total do Homem através da humanidade de um homem. Esta vontade de sinceridade arrasta-se de Montaigne a Rousseau, de Rousseau a Gide; mas é uma falsíssima sinceridade. O diário é tanto mais sincero (ou tem mais possibilidades) quanto o seu autor mantenha consigo mesmo a relação de um público com um desconhecido absoluto. Um literato que escreve um diário só pode fazer um diário literário. Ele eliminou, escolheu, escolheu-se, pensou. A pose é absolutamente flagrante quando o autor exprime a vontade absurda de não posar. Escrever é já posar mesmo quando a intenção é simplesmente objetiva: escrever um diário é posar permanentemente para si mesmo.
(...)
Que vale passarmos a vida a construirmo-nos para nós mesmos como isentos, puros, excecionais, generosos, humildes quando denunciamos uma avidez de nós próprios ignorada ou um tom de voz, um orgulho insuspeitado que afronta os céus? Porquê testemunhar da nossa radical solidão? Talvez seja radical sim, mas a desse que se sentou ao meu lado no elétrico e que quis talvez dizer-me alguma coisa que jamais me diria?
Solitários esses que têm cinco, dez volumes para escarrar na face do público a sua solidão não soltária, a sua divina solidão?
MERDA.

Vence, 3 de fevereiro 91. De regresso de um passeio breve abro a cancela do jardim e deparo comigo absorto diante do cipreste que projeta a magra sombra no branco da casa. Assim, distraído de mim, no intervalo de nada, descobri num segundo que são as coisas que nos amam e não o contrário. Em silêncio amparam-nos por existir sem ter existência e esta calada vida é um olhar pousado sobre nós. Um aceno de olhos, um abraço sem mãos. De quem?

Guarda, outubro de 95. Quem não quer ser homenageado não aceita homenagens. Eu não tive a coragem de a não aceitar. Parecia-me um orgulho maior do que recebê-la como dádiva dos outros. Mas sei que a pagarei cara. Quando a revista «Prelo» me consagrou um número especial [Maio de 1984] fiquei seis meses sem poder escrever uma linha. Talvez mais vivo para outros. Mas de luto por mim mesmo.


Eduardo Lourenço
Público Magazine, 21 abril 1996

07/08/2014

Nas caixas de lápis guardam os meninos os seus sonhos.

Ramón Gómez de la Serna. Greguerías (trad. de Jorge Silva Melo)


Perdoa e ganharás o amor
um outro realce, outra beleza.
é que se punires será o rancor
a tomar mais evidência e mais clareza.

Ibn 'Ammâr. Ibn 'Ammar Al Andalusí: drama de um poeta (trad. de Adalberto Alves e Hamdane Hadjadji)
Nas vielas os homens correm para cá, para lá,
pisando a sombra das laranjeiras.
Também os meus pensamentos rodopiam
quando não te vejo.

Mikata (séc. VII). Rosa do mundo: 2001 poemas para o futuro
Procuro na morte a vida,
saúde na enfermidade,
na cadeia a liberdade,
no mui fechado saída
e no traidor lealdade.
Mas minha sorte, de quem 
jamais espero algum bem,
com o céu estab'leceu
que, se o impossível peço eu,
nem o possível me deem.

Miguel de Cervantes. Antologia da poesia espanhola «Siglo de Oro»: Renascimento (trad. de José Bento)




Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera

Gastão Cruz. Rua de Portugal


Estamos sós com tudo o que amamos.

Novalis. Fragmentos


Nada te inquiete,
nada te assuste;
pois tudo passa,
Deus nunca muda.
A paciência
alcança tudo.
Quem Deus possui
nada lhe falta.
Só Deus nos basta.

Santa Teresa de Ávila. Seta de fogo
Primavera

O vento primaveril foi escultor
no pomar, e pelo seu engenho
cada árvore parece uma boneca.
O campo cobriu-se de um pano chinês:
os brincos das árvores são um fio de pérolas.
Como as belas mulheres por trás da cortina,
vê como o faceiro sol
ora sai da nuvem, ora volta a procurá-la.
E a alta montanha tira da cabeça
o diadema de prata; o sol brilha de novo;
o seu rosto é de seda; e o seu seio, de almíscar.

Onçori (séc. XI). Rosa do mundo: 2001 poemas para o futuro (trad. de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)
Por ti cheguei e parto.
A minha casa é onde estás.

José Agostinho Baptista. Biografia
Um relâmpago fugitivo é a vida,
que mal dá tempo de a sentirmos passar.
Imutável é a face da terra, e a do céu;
mas quão rápido muda o nosso próprio rosto!

Li Tai Po. Mesa de amigos


Dominar a natureza mas dominar primeiro o instinto de dominar a natureza.
dominar a Natureza mas dominar depois o instinto de dominar a Natureza.
Não dominar a Natureza.

Gonçalo M. Tavares. Livro da dança
As casas

As casas habitadas são belas
se parecem ainda uma casa vazia
Sem a pretensão de ocupá-las
tornam-se ténues disposições
os sinais da nossa presença:
um livro
a roupa que chegou da lavandaria
por arrumar em cima da cama
o modo como toda a tarde a luz foi
entregue ao seu silêncio

Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa

José Tolentino de Mendonça. De igual para igual



Arnold Böckin

A física desta pedra
O nome daquela árvore
A nuvem e o mar
O que a palavra diz
A hora de nascer
Enfim o mundo e eu
Porquê?

António Dacosta. A cal dos muros
Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia que caminho tomar
Mas o vento soprava forte,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Alberto Caeiro
Poemário Assírio & Alvim (8 de dezembro de 2003, dia de Lua Cheia)

04/08/2014

O ditado dizia «grão a grão enche a galinha o papo». Hoje, temos a vergonha do pequeno grão e temos tanta pressa e tanta ambição que já não há galinhas, só há pavões. Reina a expectativa do «depressa e muito». Pagaremos mais tarde esta ilusão de grandeza e velocidade. A vida nos dirá que o depressa sai mal e o muito só é muito para muito poucos.

Mia Couto. E se Obama fosse africano? e outras interinvenções
A história de cada um de nós é a de um indivíduo a caminho de ser pessoa. O que nos faz ser pessoa não é o Bilhete de Identidade. O que nos faz pessoas é o modo como pensamos, como sonhamos, como somos outros. Estamos, enfim, falando de cidadania, da possibilidade de sermos únicos e irrepetíveis, da habilidade de sermos felizes.
Um dos problemas do nosso tempo é que perdemos a capacidade de fazermos as perguntas que são importantes. A escola nos ensinou apenas a dar respostas. A vida nos aconselha a que fiquemos quietos e calados. Uma das perguntas que pode ser importante é esta: O que nos dificulta o caminho para transitarmos de indivíduos para pessoas? O que precisamos para sermos pessoas a tempo inteiro?

Mia Couto. E se Obama fosse africano? e outras interinvenções