Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


23/02/2015

Descobri nas minhas deambulações virtuais o artista austríaco Christian Schloe, que mistura ilustração digital com fotografia, criando ambientes oníricos e surrealistas, de inspiração renascentista. Voamos para outros mundos, que delícia...

Christian Schloe. A midsummer nights dream

Christian Schloe. Fable
                                                               
Christian Schloe. My heart is my castle
                                                 
 Christian Schloe. Nevermore
                                                       
Christian Schloe. The rose garden
                                                  
 Christian Schloe. Among friends
                                                       
Christian Schloe. The fishpond
                                                       
Christian Schloe. The river
                                                          
Christian Schloe. Fly away 
                               
                                                          


12/02/2015

Às vezes sabe bem recordar a frescura de Júlio Dinis. Está a chegar o Dia de S. Valentim, por isso, aqui fica esta deliciosa e, ao mesmo tempo, amarga «História de uns beijos». Uma preciosidade que descobri entre os livros do meu avô.

História de uns beijos

Ouvia gabar os beijos,
Dizer deles tanto bem,
Que me nasceram desejos
De provar alguns também.

Esta fruta não é rara,
Mas nem toda tem valor,
A melhor é muito cara
E a barata é sem sabor.

Colhi-os dos mais mimosos,
Provei três; mas, por meu mal,
Ao princípio saborosos,
Amargaram-me afinal.

Um colhi eu de uma bela
Que era Rosa, sem ser flor,
Se tinha espinhos como ela,
Dela também tinha a cor.

Vi-a dormir e furtei-lhe
Um beijo, que a acordou,
Eu gostei, porém causei-lhe
Tal susto que desmaiou.

Logo que a vi sem sentidos
Fugi sem outro lhe dar,
Pois beijos sem ser pedidos
Não são coisas p’ra brincar.

Porém deste beijo ainda
Pouco tive que dizer,
Pois a tal rosa… era linda
E tornou a reviver.

Outra vez, duma morena,
Olhos azuis, cor do céu,
Corpo esbelto, mão pequena,
Um beijo me apeteceu.

Pedi-lho, e então por bons modos,
Pedi-lho do coração.
Zombou dos meus rogos todos
E respondeu-me que não.

Zombei, como ela zombava
E um beijo à força lhe dei;
Mas… bem dado ainda não estava
E c’um bofetão o paguei.

Custou-me caro o desejo:
Que mui caro ela o vendeu.
Pagar por tal preço um beijo!
Assim não os quero eu.

Este mais do que o primeiro
Me deixou fraca impressão;
Quis provar inda um terceiro,
Para não jurar em vão.

Mas não quis fruta roubada,
Que mal com ela me dei;
Uma dama delicada
Ofereceu-ma… eu aceitei.

Ai que boa fruta era!
Estava mesmo a cobiçar.
Passar a vida quisera,
Tal fruta a saborear.

Mas no meio da colheita…
Da fruta o dono apareceu;
Zelosos olhos me deita:
Se zelava o que era seu!

Vendo o caso mal seguro
Eu logo ali lhe jurei
Restituir até com juro
A fruta que lhe tirei,

E acaso não discordasse,
Não me parecia mal
Que a ele os juros pagasse,
E à senhora… o capital.

Esta sensata proposta
Em fúrias o arrebatou,
E, por única resposta,
P’ra luta se preparou…

Oiço ainda gabar os beijos,
Dizer deles muito bem,
Mas findaram-me os desejos,
Já sei o sabor que têm.

Júlio Dinis. 1859

NOTA DO AUTOR – Desde já afirmo que não fui eu o protagonista desta história. Ainda não tive uma indigestão deste género de fruta, e nem sei, para falar francamente, se mesmo quando a tivesse, a ficaria abominando para sempre. O caso, enquanto a mim, não foi de natureza que justificasse semelhante aversão; mas enfim há suscetibilidades tais… Não afirmamos, contudo, que a dieta tenha sido escrupulosamente observada.
Nesta espécie de fruta, parece-me que, ao contrário do que se diz para as outras, é a qualidade e não a quantidade que faz o mal.


Julio Diniz. Poesias. Lisboa: Editores J. Rodrigues & C.ª, 1926. 

07/02/2015

Origens 

BIGODE
O uso da barba (e de bigode) foi sempre um símbolo honorável que representava nobreza e coragem. Era ultrajante, por exemplo, cortar-se a barba ou os cabelos ao adversário derrotado.
Apesar de algumas tentativas para se encontrar uma etimologia erudita à palavra, é mais ou menos comummente aceite que a origem seja germânica. Segundo um hábito antigo, os guerreiros alemães, antes de entrarem numa batalha, acariciavam o bigode, encomendando-se a Deus e dizendo bi God, ou seja, «por Deus».

FÚTIL
O latin fucile, por sua vez relacionado com o verbo fundo, ere era «aquilo que deixa escapar o que contém». Referiam-se os romanos a vasos rachados que deixavam correr os líquidos que continham. Daí que fossem sem préstimo, inúteis, «fúteis». 

PAIXÃO
A palavra vem diretamente do latim passio com o significado de «sofrimento» relacionado com o verbo patescere, «padecer, sofrer». Este sentido ganhou maior evidência quando foi aplicado à «paixão» (sofrimento) de Cristo. Só mais tarde a palavra se equiparou à «paixão amorosa», que (embora possa causar sofrimento) se traduzia no latim por outras palavras, como líbido (volúpia) existente no love inglês e no Liebe, alemão ou affectus, «afeição», usada por Camões na aceção de «paixão».

PESSOA
O termo nasce do latim persona.
Nos enormes anfiteatros abertos ao ar livre, dificilmente os espetadores veriam as mudanças fisionómicas ou ouviriam a voz do artista. Para obviar a tal dificuldade, adaptava-se, então, ao rosto do ator uma máscara aparelhada com bucal, diríamos hoje um altifalante. A máscara frisava, caricaturalmente, as emoções do comediante. O bucal ampliava-lhe a voz, razão pela qual se chamou persona, ou seja, composto do verbo sonare, «soar», com o prefixo per. Em breve, do simples ressoador, a palavra estendeu o significado a toda a máscara e desta por metonímia, ampliou-se ao papel dramático e daí, por metáfora, ou outro símile, o papel que representamos na vida humana, onde somos a personagem principal.

PLÁGIO
Foi o poeta latino Marcial (século I) quem usou esta palavra peça primeira vez com o sentido de «cópia ou apropriação de uma obra ou ideia alheia». Para isso, utilizou, figuradamente, o termo latino plagiu, cujo significado era «roubo de escravos alheios», crime punido com fortes chicotadas.

Orlando Neves. Dicionário da Origem das Palavras. Lisboa: Editorial Notícias, 2001.


Eu sou o deserto.
Todos os desertos são iguais, porque quando estamos acompanhados, podemos estar acompanhados de mil maneiras diferentes. Depende de quem está à nossa volta, ou daquilo que nos cerca. Mas a solidão é só uma, é sempre a mesma. Por isso, eu sou todos os desertos em toda a sua vastidão, pois a minha solidão é a solidão de todas as pessoas, de todos os seres vivos, de todas as pedras, de todas as perdas.
[…]
O pistoleiro baixou a arma e, pela primeira vez, sentiu uma vertigem estranha na pele, algo que o fez estremecer. Olhou a loira nos olhos e a vertigem entrou-lhe para dentro do corpo, abriu-lhe a carne até ao coração. Estefania sentiu a pernas a tremer, as narinas a dilatar-se, e teve medo. Passava-se alguma coisa, mas ele ainda não a sabia identificar. Continuou a fixar os olhos claros da loira e percebeu então que estava apaixonado. Era como um daqueles santos anacoretas que, depois de me adotarem como casa, depois de anos de deserto, veem Deus. Veem uma sarça a arder e ajoelham-se perante a visão da Divindade. Atirar-se-iam contra aquele fogo, dariam a sua vida, despiriam o corpo como a alma faz ao morrer, fariam qualquer coisa, pois amam até ao infinito. É por isso que os homens chamam Deus a esse fogo, porque é um sentimento de plenitude. Pode levar anos a crescer, invisível, escondido dentro do corpo, ou pode aparecer como um soluço, de um momento para o outro. Não é preciso ter um feitio compatível ou um corpo que encaixa no nosso. Não importa, porque quando se vê essa sarça ardente, já não há Eu e já não há Outro. É tudo areia até perder de vista, é tudo luz a queimar as entranhas.


Afonso Cruz. A Morte não Ouve o Pianista. Lisboa: Santillana, 2012.