Decidido a esquecer os mares de
areia que nos rodeavam, o emir recolhia-se a uma tenda. Regressando aos tempos
do seu reinado, passava horas a escrever por cima de um espelho de memórias. Nesses
escritos, o brilho azul do rio Guadalquivir voltava para soletrar reflexos da
sua alma. Como gelo a derreter, as recordações começavam finalmente a
espalhar-se por entre as palavras. Apesar de nunca ter entrado na sua tenda
nesses momentos privados, sei que assim acontecia, pois fui o único a ler o
manuscrito.
…Nasci com a vocação de poeta, mas o destino quis que eu administrasse um reino. (…) Com a poesia consegui transportar-me para o mundo mais vasto das almas. Os versos fizeram-me chegar mais perto das inquietações humanas, enquanto os deveres de monarca sempre me expulsaram da proximidade dos homens.
…
Coisa alguma iguala a beleza de
um poema que revela o silêncio de uma voz em sofrimento. As poucas palavras de
um verso, sendo as mesmas que usamos no dia a dia, consentem em transformar-se
para simbolizar, com uma majestade inigualável, as mágoas e os amores do
universo. Esse prodígio ninguém verdadeiramente sabe explicar, nem mesmo
Zaydun, o meu mestre.
Ana Cristina Silva. Crónica do rei-poeta Al-Mut’Amid
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