Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


25/07/2014


Henri Rousseau


 Nunca Alberto vira, no mundo já trilhado, maior fúria dos elementos. Sob a rajada, a selva cada vez arfava mais, rangia por toda a parte e dir-se-ia prestes a destruir-se no intenso clamor. Era fantástica e alucinante no seu sinistro ulular, a que só punha breve pausa o estampido do trovão, que abalava toda a terra. Depois, de algures, reboando com secura, chegava o alarido forte de grande tronco rasgado de alto a baixo pelo rio. Era um estralejar nervoso que aquietava em pânico todos quantos o ouviam. Os trovões sucediam-se e os relâmpagos entrelaçavam-se numa doida apoteose de mundo falido. E, de quando em quando, vinha de longe, surdamente, a nota grave de colosso que o vendaval tombava, na barulheira, na barulheira da selva endemoniada.
          Caíram, depois, uns pingos grossos e logo a bátega desabou. Firmino, olho à direita, olho à esquerda, descobriu, por fim, abrigo e foi encalhar a piroga entre dois velhos troncos. Lá estava, mais além, a sapopema entrevista.
- Depressa, seu Alberto, senão fica mesmo como um pinto!


Ferreira de Castro. A selva, Porto, Civilização, [1930], pp. 192 e 193


Descrição impressionante de uma tempestade na selva... Ferreira de Castro maneja os verbos e os adjetivos de forma expressiva e magistral.

02/07/2014



Li finalmente Quem me dera ser onda, do escritor angolano  Manuel Rui, e descobri uma história divertida na qual tudo gira em torno de um elemento alegórico: um porco, ou melhor, um leitão, chamado, imagine-se, Carnaval da Vitória.
Mais estranho do que o seu nome é o facto de Carnaval da Vitória morar num apartamento de um sétimo andar. Enquanto o dono da casa pretendia engordá-lo para servir de refeição, a mulher e, sobretudo, os filhos tratavam-no com o desvelo de um membro da família. A chegada deste novo morador cria um ambiente subversivo e sugere um «mundo às avessas», modificando a maneira de viver dos que o rodeiam e dando origem a cenas engraçadas. As crianças escondem-no de um fiscal; levam-no para a escola e transformam-no no tema central das suas composições, pondo “uma escola inteira a dissertar sobre um porco”, em vez de exercitarem a criatividade escrevendo sobre temas populares e valores nacionais (p. 46); o porco é um ouvinte assíduo, embora forçado, de rádio, evitando-se, assim, que “fale”; graças a Carnaval da Vitória e a um bem pensado estratagema das crianças, a família passa a comer peixe e carne de porco… Símbolo da revolução social e da amizade entre crianças, é também através do animal que se critica um sistema educativo alienado e a hipocrisia humana. Tudo apimentado por um sentido de humor e uma fina ironia que perpassam, do princípio ao fim, este livro, justo vencedor do Prémio Nacional Agostinho Neto.



Pergunto-me o que aconteceria se eu confessasse tudo. O que é que aconteceria se eu gritasse a verdade ao mundo não deixando escapar nenhuma palavra de sinceridade?
 (...)
Ela, como aliás a maior parte das pessoas, gosta de saber pouco. Prefere usar as representações de si própria para aferir as certezas pela medida única das aparências. Percebo que existem limites para a queda das máscaras. Evita-se os acontecimentos terríveis, pratica-se a comunicação hipócrita respirada boca a boca com palavras encobertas.

Cristina Silva. A mulher transparente