Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade
medindo o equilíbrio dos meus passos.
Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam,
e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força
perversa das coisas ata-me os braços e atira-me,
prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio
horror das voltas do caminho.
Sophia de Mello Breyner Andresen. Coral
Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.
Vergílio Ferreira
21/01/2013
17/01/2013
O renascer dos belos sentimentos
uma vez satisfeitas as necessidades básicas
«Para se exercerem as virtudes do espírito
é necessário um mínimo de conforto material.»
(Santo Agostinho)
Esta pungente história se passou no meio de uma selva, nas areias de um deserto, num velho navio abandonado e sem rumo, em qualquer lugar em que há dificuldade de alimentação e o homem começa a sentir o remorder do antropo ou qualquer outra fagia que lhe espicace o estômago.
Pois, sozinho e sem se alimentar há vários dias o homem vinha caminhando no vasto areal (ou selva, etc.), seguido apenas de seu fiel cachorro. Lá para as tantas lhe deu, porém, o espicaçar acima enunciado, a fome bateu-lhe às portas da barriga: «Pan, pan, pan, ó de casa!» Já batera antes, mas o homem fingia que não ouvia. Naquele momento, porém, não resistiu mais e atendeu à fome. Matou o cachorrinho, única coisa comível num raio de quilómetros. Matou-o, assou-o num fogo improvisado e comeu-o todo, todo, com uma fome canina (perdão!). Quando tinha acabado de comer todo o animal, sentou-se, plenamente satisfeito. E foi então que olhou em torno e começou a chorar: «Ai, ai, ai, soluçou, - pobre do Luizinho! Como ele adoraria roer esses ossos!».
Moral: Quando eu tiver uma casa bem confortável escreverei um Tratado de Sociologia.
Pois, sozinho e sem se alimentar há vários dias o homem vinha caminhando no vasto areal (ou selva, etc.), seguido apenas de seu fiel cachorro. Lá para as tantas lhe deu, porém, o espicaçar acima enunciado, a fome bateu-lhe às portas da barriga: «Pan, pan, pan, ó de casa!» Já batera antes, mas o homem fingia que não ouvia. Naquele momento, porém, não resistiu mais e atendeu à fome. Matou o cachorrinho, única coisa comível num raio de quilómetros. Matou-o, assou-o num fogo improvisado e comeu-o todo, todo, com uma fome canina (perdão!). Quando tinha acabado de comer todo o animal, sentou-se, plenamente satisfeito. E foi então que olhou em torno e começou a chorar: «Ai, ai, ai, soluçou, - pobre do Luizinho! Como ele adoraria roer esses ossos!».
Moral: Quando eu tiver uma casa bem confortável escreverei um Tratado de Sociologia.
Millôr Fernandes. “Fábulas Fabulosas”, in PIF-PAF
Volto-me a estar calmo – olho para as coisas que não estão à minha volta e vejo-me a contar-lhe futuros num cenário perfeitamente rústico. Ela deixa-se levar pelo que não digo e fica pensativa ao ver-me tão calmo. O que terá acontecido?
As horas iguais vão passando num cadenciar sem fantasmas – de vez em quando sobem uns ruídos de silêncio que me atemorizam, são espiões de mim sem me poder estacionar. As estrelas da noite riem-se, a lua está lá por trás num coito de fase satélica, os morcegos gritam-se de meter medo e o azul carregado de imensidão absorve de mata-borrão toda a claridade. Não sei onde me hei-de meter. Deixo-me ficar calado para sentir o apunhalar das badaladas ao longe. Paro-me.
Vou mesmo a cair de sono encostar-me à parede para não deambular mais – aos poucos surpreendo-me ainda acordado para recordações que não me podem pertencer. Preciso de um estimulante. – Talvez a madrugada me dê um Te-Deum de luz. – Há um mundo que acaba nos sucos possíveis junto à grade da minha janela. Estou-me novamente só. Já nem me tenho a mim para falar – é o deserto total de lusco-fusco onde se ouve de tempos a tempos um estridente felino ou uma aurora boreal. As pessoas estão todas encaixadas nas casas e presas às suas camas – a vida parece um jogo de guaritas e eu um guarda-nocturno apaixonado. Quero sair do beco onde não estou e experimentar o fumo da fábrica que sobe pela manhãzinha. E Ela?
Ruben A. Caranguejo
05/01/2013
Num sábado, ao
regressar de camioneta do quartel, vi de novo Ana Clara. Atravessava a rua
lentamente na minha direção. Surpreendi-a a olhar-me por detrás de umas
pálpebras que se baixavam numa expetativa hesitante, enquanto espiava alguém
inverosímil trazido do passado por uma camioneta. Estabeleci rapidamente uma
comparação discreta entre aquela rapariga que avançava na minha direção e a
menina do andar abaixo com quem costumava brincar em criança. Os seus passos
miúdos aproximavam-me de um tempo onde tudo era fluido, a minha mãe ainda não
havia morrido, eu não tinha enfrentado as camaratas dos sucessivos colégios, e
ela, a Ana Clara, ainda não havia mudado com os pais para uma outra cidade.
Falámos durante alguns minutos, cada
palavra detinha-se por uns instantes numa estranha intimidade de infância,
interrompida por um luto e por uma mudança de cidade. A sua presença pareceu-me
um indício objetivo de que seria possível isolar o instante onde as coisas
poderiam ter sido diferentes. Era como se alguém me estivesse a dar uma segunda
oportunidade para me redimir de algo indefinido. Era como se fosse possível
interpolar o destino e desafiar a sua propensão para engendrar mais
fatalidades. Convidei-a para sairmos nessa mesma noite, abrindo outra porta ao
destino.
…
Deslocava as
catástrofes para o coração dos meus quadros. Continuava a pintar. Precisava de
ver os esboços a evoluir para figuras definitivas para acreditar na minha densidade.
Mal o Francisco saía de manhã, dava algumas ordens à empregada e corria a
refugiar-me no estúdio. As tintas arrastavam formas, alastravam por figuras à
espera de se separarem de mim. O pincel criava, à volta de dois corpos, a
saudade de um abraço, o pincel desvendava, no contorno de um corpo adormecido,
o seu sonho. Esquecia-me que por detrás dos movimentos das minhas mãos existia
uma mulher de roupão, hesitante e com medo de quase tudo que não tivesse a ver
com as imagens de uma vida sonhada.
…
Em certos dias o analista sentia-se perdido. As sensações dos seus pacientes
infiltravam-se e misturavam-se com tudo o que sempre sentira debaixo da pele. Os
efeitos da absorção das vidas alheias faziam-se sentir como uma doença latente
à espera de o encontrar vulnerável para se manifestar. A profissão exigia dele
que escavasse um buraco oco na sua mente para depositar recordações, raivas e
amores perdidos. Tinha feito a sua própria análise, aprendido com os melhores
mestres de Paris. Sabia que as suas emoções deveriam escoar-se como água
silenciosa para pôr em curso uma purgação. As suas emoções serviam para purgar
e o que estava a ser purgado teria de deslizar sobre si como puro murmúrio.
A maior parte dos casos eram difíceis. Não
havia paciente que não proferisse uma meia mentira, que não forçasse a verdade,
deformando-a por omissão ou por exagero. Tinha estudado. Era suposto
compreender os fenómenos e as razões obscuras das reações humanas. Sabia que as
pessoas transmitiam os seus pensamentos por símbolos, que escondiam as coisas
essenciais através de uma linguagem cifrada, uma linguagem inconsciente. Os pacientes
falavam, três palavras e dois sinais em lugar da única palavra que tinham
receio de nomear. Depois rodeavam o que acabavam de dizer num enorme diálogo,
um discurso de encantamento racional, que os seus mais profundos temores
acreditavam poder manter indecifrável. Era o seu trabalho: lutar contra as ideias
fixas, depurar o silêncio por detrás do enorme ruído das palavras. (…) Dessa
maneira deixava espaço aos pacientes para se aproximarem de coisas primordiais,
das quais se julgavam separados para sempre. (…) Se o seu trabalho ficasse bem
feito, passados alguns anos, os pacientes percebiam que tinham vivido com quem
está a sonhar a ausência de um sonho. Percebiam que durante muito tempo tinham
visto sem nada ver, distinguindo as cores das coisas pelas que só existiam nos próprios
olhos. Tinham escutado sem ouvir, a não ser as palavras que os seus lábios
conheciam de cor.
Cristina Silva. À Meia-Luz
Cristina Silva
24-12-2012
Nos últimos cinco anos publicou cinco livros, o último
dos quais em 2012, O Rei do Monte Brasil, muito apreciado pela
crítica. Falamos de Cristina Silva, a quem temos o prazer de entrevistar.
Entre Mariana, Todas as Cartas, que é um
romance de memórias do marialvismo, editado em 2002, e O Rei do Monte Brasil,
onde explora a memória de Joaquim Mouzinho de Albuquerque e de Gungunhana,
editado em 2012, passaram dez anos e foram editados nove livros, quase todos do
género histórico. É a História que a arrasta para a ficção, Cristina Silva?
A História dá-me a intemporalidade dos
conflitos humanos. Vou buscar à História figuras ou acontecimentos que ilustram
a natureza humana, independentemente de um contexto histórico preciso. E acabo
a escrever sempre sobre os mesmos temas: a violência, o amor ou o poder, os
quais acabam por ser os grandes temas da literatura. A História dá-me o
pretexto mas acho que escrevo romances mais centrados sobre a dimensão
psicológica das vivências humanas do que sobre a ilustração de situações
históricas.
O que é que realmente a motivou a escrever O Rei do
Monte Brasil?
O poder e o confronto entre duas culturas.
Interessou-me o processo de decadência de duas personagens, de culturas diferentes
(europeia e portuguesa), que tinham em comum o facto de deterem o poder. E os
efeitos da perca do poder. Depois interessa-me sempre a dimensão psicológica de
personagens que tem um carácter mítico como é o caso destas duas personagens.
O Rei do Brasil é a história de duas
civilizações que se confrontam. Ao ler a obra, porém, damos conta de uma certa
intemporalidade. A essência e afirmação do poder são hoje muito diferentes do
que eram no século XIX? Podemos estabelecer paralelismos?
O poder, a luta pelo poder, a manutenção do poder são uma espécie de afrodisíaco, tanto hoje como no séc. XIX. Há certas pessoas cuja principal motivação é a possibilidade de dominarem outras, mesmo que envolvam essa motivação com um discurso de boas intenções.
A Cristina Silva é uma escritora bastante atenta aos
problemas sociais, de resto intervém com regularidade nas redes sociais. Será
que há ainda Mouzinhos de Albuquerque e Gungunhanas na sociedade atual? Como vê
a situação atual em Portugal?
A situação em Portugal é horrível. Do
ponto de vista ideológico, este governo é um expoente trágico da estupidez
neoliberal, venera os mercados, despreza o trabalho e as pessoas. Acho até que
as determinações da troika são usadas para cumprir o seu próprio programa
ideológico. Do ponto de vista da ação política levam a demagogia e a
manipulação dos argumentos a um nível nunca visto. Têm mergulhado enormes
faixas da população na miséria (é inadmissível que em Portugal do século XXI se
passe fome ou que a resposta para isso seja o assistencialismo) com uma
indiferença e arrogância absolutamente escandalosas. Hoje em dia o medo, a
falta de esperança é o sentimento dominante em Portugal.
No meio de tantas amolgadelas, como encara a
literatura nos tempos que correm? Alguma coisa a surpreendeu este ano?
Curiosamente, a literatura portuguesa está
bem e recomenda-se com imensos novos autores de qualidade. A literatura é por
excelência o espaço das histórias e da linguagem e essas duas dimensões definem
até certo ponto a natureza humana. Por isso, no meio de todas as crises, a
literatura irá sempre reescrever visões para cada um dos momentos históricos da
humanidade. Este ano surpreendeu-me a facilidade como os pressupostos de uma
sociedade podem ser tão facilmente destruídos em nome da ganância do
capitalismo financeiro.
A Cristina Silva deseja, muito provavelmente,
dedicar-se à escrita a tempo inteiro. Escreve por entretenimento, por vontade
de contribuir por boas causas, por ambas, ou por outro motivo qualquer?
Eu acho que um autor deve conseguir agitar
consciências. No entanto a principal motivação é a busca de um universo quase
onírico que é a história, o apelo das personagens, o facto de se construir um
edifício que faz sentido e que tem uma linguagem própria. As temáticas que me
surgem acabam por andar à volta da violência, do amor e do poder porque como
qualquer autor sofro daquela prepotência de quem gostaria de mudar o mundo.
Quem visita com regularidade o Portal da Literatura
não nos perdoaria se não lhe pedíssemos para nos falar sobre o seu próximo
livro: o décimo.
O meu próximo livro está pronto e em
princípio sai em Setembro. Chama-se A segunda morte de Ana Karenina porque procura
abordar todas as formas de adultério. O livro foca o horror das trincheiras na
primeira guerra mundial, a questão da homossexualidade, a relação entre o
teatro e vida e sobretudo é um ajuste de contas entre um homem e uma mulher.
Fonte: www.portaldaliteratura.com
Que quereis, real senhor?
Vossa alta senhoria?
El-rei estava na
torre de menagem e, pensativamente, contemplava o seu reino de uma janela que
sobre ele deitava.
A perder de vista,
até às montanhas rosadas que sustinham o mar, era um tabuleiro revolto de
leiras cultivadas, extensões sombreadas de bosques, sulcos de ravinas e
montados, negrumes de matagais imensos e medonhos. Muito ao longe, a torre de
um mosteiro, de ameias pontudas, impunha-se sobre agros elaborados e serenos.
Mas a dois tiros de besta, para além do burgo de casebres de pedra mal
amanhada, cobertos de colmos apodrecidos, já se eriçavam as urzes da coutada
escura, abrindo a um matagal de floresta cerrada, onde, pelos dias eram
senhores os ursos e, pelas noites, campeavam as encantações dos rochedos e das
árvores, único desafio conhecido ao poder do rei, que não tinha leis nem
validos que pudessem com ele.
Não se moveu el-rei
quando Jano se anunciou e se ajoelhou a seus pés. Desejando, no íntimo, estava
que o conde nunca mais chegasse. Não lhe deu para entrar logo no discurso que,
desde há muito, vinha aparelhando, porventura inspirado pela contemplação dos
seus domínios, em que o solar de Jano figurava um ponto mal discernível na
paisagem.
Lento, cofiando a
barba, acenou ao conde para que se levantasse. Encarou-o, infixamente, por um
instante. Depois, inquiriu em voz incerta:
- Sabeis, conde, as
agruras que sofre um rei para entregar em boa ordem, a quem Deus assinalar, a
terra e o povo que confiados lhe foram pelo mesmo Deus?
- Eu, senhor, pobre
de mim, pouco mais sei que de montarias e fossados, e o que baste dos Sagrados
Textos para salvação de minha alma…
- Quando Nosso
Senhor for servido convocar-me, será a infanta rainha e terá de se valer, sem
meu conselho e amparo… ou o de outrem que lhe mereça estima e fé…
O rei suspirou,
passou em frente do conde, que se mantinha de cabeça baixa, num silêncio
embaraçado, e sentou-se a uma mesa de madeira tosca que ocupava o centro da
quadra. Durante uns instantes, pareceu meditar, com a cabeça entre as mãos.
Depois, num assomo de coragem, procurou, em voz já firmada:
- Que faríeis vós,
conde, pelo vosso rei?
- Tudo o que tenho
vos pertence, meu senhor, e se mais pudera acrescentar, depois dos trabalhos
que passei, a bem de vosso nome e de vossa fortaleza…
O rei deu uma
punhada com força na mesa e ergueu-se, ameaçador. Instintivamente, Jano recuou.
“
Mário de Carvalho.
“O Conde Jano”, in Quatrocentos Mil
Sestércios Seguido de O Conde Jano, Lisboa, Caminho, 1991
Obrigada,
querida amiga Natália, por esta sugestão de leitura, que me levou até às noites
de luar no pátio da casa da minha avó, até às histórias que a sua voz tecia por
entre os montes salpicados de brilhos ancestrais…
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