Num sábado, ao
regressar de camioneta do quartel, vi de novo Ana Clara. Atravessava a rua
lentamente na minha direção. Surpreendi-a a olhar-me por detrás de umas
pálpebras que se baixavam numa expetativa hesitante, enquanto espiava alguém
inverosímil trazido do passado por uma camioneta. Estabeleci rapidamente uma
comparação discreta entre aquela rapariga que avançava na minha direção e a
menina do andar abaixo com quem costumava brincar em criança. Os seus passos
miúdos aproximavam-me de um tempo onde tudo era fluido, a minha mãe ainda não
havia morrido, eu não tinha enfrentado as camaratas dos sucessivos colégios, e
ela, a Ana Clara, ainda não havia mudado com os pais para uma outra cidade.
Falámos durante alguns minutos, cada
palavra detinha-se por uns instantes numa estranha intimidade de infância,
interrompida por um luto e por uma mudança de cidade. A sua presença pareceu-me
um indício objetivo de que seria possível isolar o instante onde as coisas
poderiam ter sido diferentes. Era como se alguém me estivesse a dar uma segunda
oportunidade para me redimir de algo indefinido. Era como se fosse possível
interpolar o destino e desafiar a sua propensão para engendrar mais
fatalidades. Convidei-a para sairmos nessa mesma noite, abrindo outra porta ao
destino.
…
Deslocava as
catástrofes para o coração dos meus quadros. Continuava a pintar. Precisava de
ver os esboços a evoluir para figuras definitivas para acreditar na minha densidade.
Mal o Francisco saía de manhã, dava algumas ordens à empregada e corria a
refugiar-me no estúdio. As tintas arrastavam formas, alastravam por figuras à
espera de se separarem de mim. O pincel criava, à volta de dois corpos, a
saudade de um abraço, o pincel desvendava, no contorno de um corpo adormecido,
o seu sonho. Esquecia-me que por detrás dos movimentos das minhas mãos existia
uma mulher de roupão, hesitante e com medo de quase tudo que não tivesse a ver
com as imagens de uma vida sonhada.
…
Em certos dias o analista sentia-se perdido. As sensações dos seus pacientes
infiltravam-se e misturavam-se com tudo o que sempre sentira debaixo da pele. Os
efeitos da absorção das vidas alheias faziam-se sentir como uma doença latente
à espera de o encontrar vulnerável para se manifestar. A profissão exigia dele
que escavasse um buraco oco na sua mente para depositar recordações, raivas e
amores perdidos. Tinha feito a sua própria análise, aprendido com os melhores
mestres de Paris. Sabia que as suas emoções deveriam escoar-se como água
silenciosa para pôr em curso uma purgação. As suas emoções serviam para purgar
e o que estava a ser purgado teria de deslizar sobre si como puro murmúrio.
A maior parte dos casos eram difíceis. Não
havia paciente que não proferisse uma meia mentira, que não forçasse a verdade,
deformando-a por omissão ou por exagero. Tinha estudado. Era suposto
compreender os fenómenos e as razões obscuras das reações humanas. Sabia que as
pessoas transmitiam os seus pensamentos por símbolos, que escondiam as coisas
essenciais através de uma linguagem cifrada, uma linguagem inconsciente. Os pacientes
falavam, três palavras e dois sinais em lugar da única palavra que tinham
receio de nomear. Depois rodeavam o que acabavam de dizer num enorme diálogo,
um discurso de encantamento racional, que os seus mais profundos temores
acreditavam poder manter indecifrável. Era o seu trabalho: lutar contra as ideias
fixas, depurar o silêncio por detrás do enorme ruído das palavras. (…) Dessa
maneira deixava espaço aos pacientes para se aproximarem de coisas primordiais,
das quais se julgavam separados para sempre. (…) Se o seu trabalho ficasse bem
feito, passados alguns anos, os pacientes percebiam que tinham vivido com quem
está a sonhar a ausência de um sonho. Percebiam que durante muito tempo tinham
visto sem nada ver, distinguindo as cores das coisas pelas que só existiam nos próprios
olhos. Tinham escutado sem ouvir, a não ser as palavras que os seus lábios
conheciam de cor.
Cristina Silva. À Meia-Luz
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