Março-29-53. O Diário é uma forma patológica de comportamento. Os seus autores não são doentes de nenhuma doença que possa classificar-se. São doentes de si mesmos. Eles reinventam ao mesmo tempo a doença, o médico e o remédio. Um Diário é a fabricação contínua dessa febre artificial, o mais injustificável dos processos literários de comunicar consigo próprio ou com o próximo.
O ato de fazer diário não tem defesa possível a não ser para quem tiver a coragem pública de Montaigne de se confessar mais interessante que o resto do Universo. Como processo de autoconhecimento é ilusório. É o ato de escrever um diário que é mais revelador sobre a alma de quem o escreve do que tudo quanto nele se escreve. O único tipo de Diário justificável seria de caráter puramente utilitário, eu quero dizer de utilidade imediata e pessoal, no género de um livro de cozinha onde se registem receitas úteis...
A grande justificação moral do Diário é a de ser uma tentativa de esclarecimento total do Homem através da humanidade de um homem. Esta vontade de sinceridade arrasta-se de Montaigne a Rousseau, de Rousseau a Gide; mas é uma falsíssima sinceridade. O diário é tanto mais sincero (ou tem mais possibilidades) quanto o seu autor mantenha consigo mesmo a relação de um público com um desconhecido absoluto. Um literato que escreve um diário só pode fazer um diário literário. Ele eliminou, escolheu, escolheu-se, pensou. A pose é absolutamente flagrante quando o autor exprime a vontade absurda de não posar. Escrever é já posar mesmo quando a intenção é simplesmente objetiva: escrever um diário é posar permanentemente para si mesmo.
(...)
Que vale passarmos a vida a construirmo-nos para nós mesmos como isentos, puros, excecionais, generosos, humildes quando denunciamos uma avidez de nós próprios ignorada ou um tom de voz, um orgulho insuspeitado que afronta os céus? Porquê testemunhar da nossa radical solidão? Talvez seja radical sim, mas a desse que se sentou ao meu lado no elétrico e que quis talvez dizer-me alguma coisa que jamais me diria?
Solitários esses que têm cinco, dez volumes para escarrar na face do público a sua solidão não soltária, a sua divina solidão?
MERDA.
Vence, 3 de fevereiro 91. De regresso de um passeio breve abro a cancela do jardim e deparo comigo absorto diante do cipreste que projeta a magra sombra no branco da casa. Assim, distraído de mim, no intervalo de nada, descobri num segundo que são as coisas que nos amam e não o contrário. Em silêncio amparam-nos por existir sem ter existência e esta calada vida é um olhar pousado sobre nós. Um aceno de olhos, um abraço sem mãos. De quem?
Guarda, outubro de 95. Quem não quer ser homenageado não aceita homenagens. Eu não tive a coragem de a não aceitar. Parecia-me um orgulho maior do que recebê-la como dádiva dos outros. Mas sei que a pagarei cara. Quando a revista «Prelo» me consagrou um número especial [Maio de 1984] fiquei seis meses sem poder escrever uma linha. Talvez mais vivo para outros. Mas de luto por mim mesmo.
Eduardo Lourenço
Público Magazine, 21 abril 1996
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