A mística do instante, de José Tolentino Mendonça. Prior Velho:
Paulinas, [2014].
Cansaço
A verdade é que as nossas
sociedades ocidentais estão a viver uma silenciosa mudança de paradigma: o
excesso (de emoções, de informação, de expectativas, de solicitações…) está a
atropelar a pessoa humana e a empurrá-la para um estado de fadiga, de onde é
cada vez mais difícil retornar. O risco é o aprisionamento permanente nesse
cansaço, como explicava profeticamente Fernando Pessoa: «Estou cansado, é
claro./De que estou cansado não sei:/De nada me serviria sabê-lo/Pois o cansaço
fica na mesma.»
Aproximação da natureza
Ao mesmo tempo que floresce a
indústria dos perfumes, desaprendemos a distinguir o aroma das flores. Por mais
que isso seja dez mil vezes mais prático, passar pela frutaria do inodoro
hipermercado não é a mesma coisa que atravessar a catedral de aromas de um
pomar. (…) A nossa distância da natureza é tão grande que deixamos de saber
coisas tão elementares como caminhar descalço, dobrar-se na clareira e afastar
mansamente as folhas da fonte para beber devagarinho, ou acariciar a vida
desprotegida que se avizinha de nós. Assim nos tornamos os «analfabetos
funcionais» que somos, resumia o cineasta Ingmar Bergman. Não será tempo de
voltarmos aos sentidos? Não será esta uma oportunidade propícia para os
revitalizarmos? Não é chegado o instante de compreender melhor aquilo que une
sentidos e sentido?
Escutar
Escutamos com os nossos ouvidos
os rumores do mundo externo, seja o ruído, as vozes, a música que nos consola. Contudo,
quando falamos da escuta desinteressada do outro, sentimos que há um outro
nível de audição que precisamos de aprender. Não há apenas uma escuta com os
ouvidos, mas também um escutar com o coração, que mais não é do que uma escuta
profunda, onde todos os sentidos nos são úteis.
Momentos da vida
Observamos muitas vezes em nós
próprios um analfabetismo perante as expressões fundamentais da vida. Até termos
certezas, até praticamos, até sabemos, mas há momentos da vida que nos deixam
sem palavras, que nos fazem sentir sem apoio: uma doença, um incidente, uma
crise, ou então uma grande alegria, um grande encontro… Em determinadas
circunstâncias damos por nós num caminho que parece paralelo, porque a fé não tem
suficiente capacidade de hospitalidade do que somos ou daquilo em que nos
tornamos.
Repouso, libertação
O corpo deve encontrar-se não só
na atividade, mas também no repouso, libertar-se da pressão do imediato, do
peso das solicitações, abrindo-se em certos instantes sem porquê, como o
mistério dizia que florescem as rosas. Encontraremos então, finalmente, tempo
para contemplar, para nos deliciarmos com a audição e o sabor, para sentir o
perfume daquilo que passa, para tocar, ou quase tocar, aquilo que permanece.
Esperança
A esperança mantém-nos vivos. Não
nos permite viver macerados pelo desânimo, absorvidos pela desilusão,
derrubados pelas forças da morte. Compreender que a esperança floresce no
instante é experimentar o perfume do eterno.
…
A Vida que se escreve com
maiúscula, aquela que é digna desse nome, não é outra coisa que uma operação
esperançosa, e de alto risco na maior parte dos casos. Sem esperança, só
notamos a pedra, o caráter tosco, o obstáculo fatigante e irresolúvel. É a
esperança que entreabre, que faz ver para lá das duras condições a riqueza das
possibilidades quinda escondidas. A esperança é capaz de dialogar com o futuro
e de o aproximar. A nossa existência, do princípio ao fim, é uma profissão de fé
na esperança. (…) A semente para frutificar precisa da mão que a atire para
mais longe. O barco precisa de quem, enamorado pela viagem, seja capaz de o
ajudar a deixar a quietude ilusória do porto. A página precisa de quem arrisque
contar uma história. Nas coisas mais pequenas como nas grandes encontramos o
mesmo chamamento à esperança.
Instante
Se observarmos bem, somos continuamente
despojados do passado e, por mais que façamos, não conseguimos antecipar do
futuro qualquer parcela, por ínfima que seja. Só nos resta o instante, só
instante nos pertence. (…) É a frágil ponte de corda que une o tempo à
promessa.
Solidão hoje
A cultura contemporânea deixou de
nos preparar para a solidão. Na maior parte das vezes é uma aprendizagem que
temos de fazer em cima dos próprios acontecimentos, ou na sua dolorosa ressaca,
e de forma muito desacompanhada. (…) A amizade e o amor são formas de
codividir, diminuir, dar serenidade ou potenciar criativamente a solidão, mas o
assobio ininterrupto da solidão continuará a fazer-se ouvir no abraço redondo
dos amantes ou na ronda magnífica dos amigos. Recordar-se disso é humanizar o
modo como julgamos e tocamos a realidade.
Paciência
Eu diria que o exercício da
paciência começa pela aceitação esperançosa da vida. Ela coloca-nos face a face
com a vulnerabilidade, aquela própria e a dos outros. (…) Não se deve confundir
paciência com indecisão, passividade, escassa coragem. Pelo contrário: é a
audácia de não se deixar instrumentalizar pela precipitação ou bloquear pelo
temor, investindo ativamente o nosso tempo na gestão das expressões complexas e
inesperadas da vida, mas fazendo-o com sabedoria, serenidade e atitude construtiva.
Gosto muito do modo como São Tomás de Aquino explica a paciência. Diz ele: a
paciência é a capacidade de não desesperar.
Escuta
Numa cultura de avalanche como a nossa, a
verdadeira escuta só se pode configurar como um recuo crítico perante o
frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto parecem
aprisionar-nos. Experimentamos como os modelos de vida impostos são
atordoantes. A compensação para as nossas existências extenuadas é o entretenimento.
Porém, a própria palavra «entreter» é reveladora: entre-ter, ter ou manter
entre, numa espécie de suspensão que nos captura. E a dada altura, já não
vivemos em lado nenhum, numa no man’s
land que é ao mesmo tempo a nossa morada e o nosso exílio. A arte da escuta
é, por isso, um exercício de resistência. Ela estabelece uma descontinuidade em
relação ao real aparente, à sucessão ociosa dos contactos, à enxurrada que a telenovelização do quotidiano (seja ele
político, económico ou cultural) comporta. A escuta constitui, por vezes, uma
cesura, um corte simbólico, uma recusa, uma deslocação. Uma coisa é certa: sem
ela, rapidamente a nossa vida se torna invadida, colonizada, uma vida que não
nos pertence.
Viagem
A geografia tende inevitavelmente
a tornar-se metafórica e ninguém que caminhe sobre o mundo não acaba, a certo
momento, por se dar conta, talvez com alegria, talvez com dor, que vem
caminhando sobretudo dentro de si. (…)
Desenganem-se os que têm as
viagens apenas por exteriores. Não é simplesmente a cartografia da paisagem que
os homens palmilham. Deslocar-se, queira-se ou não, implica uma mudança de
posição; uma alteração ao ângulo habitual; uma exposição ao diverso; uma
maturação do próprio olhar; um reconhecimento de que alguma coisa nos falta;
uma adaptação a realidades, tempos o linguagens, ou a descoberta de uma
incapacidade para tal; um confronto inexcusável; um diálogo tenso ou
deslumbrado que nos deixa, necessariamente, com uma tarefa ulterior. A experiência
da viagem é a experiência da fronteira e do aberto, de que cada um de nós
precisa para ser.
Tempo
O ponto de sabedoria é aceitar
que o tempo não estica, que ele é incrivelmente breve e que, por isso, temos de
vivê-lo com o equilíbrio possível. Não nos podemos iludir com a lógica das
compensações: que o tempo que roubamos, por exemplo, às pessoas que amamos,
procuraremos devolvê-lo de outra maneira, organizando um programa ou
comprando-lhes isto e aquilo; ou o que retiramos ao repouso e à contemplação,
vamos tentar compensar numas férias extravagantes. A gestão do tempo é uma
aprendizagem que, como indivíduos e como sociedade, precisamos de fazer.
Nós e os outros
A nossa história começa antes de
nós e persistirá depois. Somos o resultado de uma cadeia inumerável de
encontros, de gestos, boas vontades, sementeiras, afagos, afetos. Colhemos inspiração
e sentido de vidas que não são nossas, mas que se inclinam pacientemente para
nós, iluminando-nos, fundando-nos na confiança.
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