Às vezes sabe bem recordar a frescura de Júlio
Dinis. Está a chegar o Dia de S. Valentim, por isso, aqui fica esta deliciosa
e, ao mesmo tempo, amarga «História de uns beijos». Uma preciosidade que
descobri entre os livros do meu avô.
História de uns beijos
Ouvia gabar os beijos,
Dizer deles tanto bem,
Que me nasceram desejos
De provar alguns também.
Esta fruta não é rara,
Mas nem toda tem valor,
A melhor é muito cara
E a barata é sem sabor.
Colhi-os dos mais mimosos,
Provei três; mas, por meu mal,
Ao princípio saborosos,
Amargaram-me afinal.
Um colhi eu de uma bela
Que era Rosa, sem ser flor,
Se tinha espinhos como ela,
Dela também tinha a cor.
Vi-a dormir e furtei-lhe
Um beijo, que a acordou,
Eu gostei, porém causei-lhe
Tal susto que desmaiou.
Logo que a vi sem sentidos
Fugi sem outro lhe dar,
Pois beijos sem ser pedidos
Não são coisas p’ra brincar.
Porém deste beijo ainda
Pouco tive que dizer,
Pois a tal rosa… era linda
E tornou a reviver.
Outra vez, duma morena,
Olhos azuis, cor do céu,
Corpo esbelto, mão pequena,
Um beijo me apeteceu.
Pedi-lho, e então por bons modos,
Pedi-lho do coração.
Zombou dos meus rogos todos
E respondeu-me que não.
Zombei, como ela zombava
E um beijo à força lhe dei;
Mas… bem dado ainda não estava
E c’um bofetão o paguei.
Custou-me caro o desejo:
Que mui caro ela o vendeu.
Pagar por tal preço um beijo!
Assim não os quero eu.
Este mais do que o primeiro
Me deixou fraca impressão;
Quis provar inda um terceiro,
Para não jurar em vão.
Mas não quis fruta roubada,
Que mal com ela me dei;
Uma dama delicada
Ofereceu-ma… eu aceitei.
Ai que boa fruta era!
Estava mesmo a cobiçar.
Passar a vida quisera,
Tal fruta a saborear.
Mas no meio da colheita…
Da fruta o dono apareceu;
Zelosos olhos me deita:
Se zelava o que era seu!
Vendo o caso mal seguro
Eu logo ali lhe jurei
Restituir até com juro
A fruta que lhe tirei,
E acaso não discordasse,
Não me parecia mal
Que a ele os juros pagasse,
E à senhora… o capital.
Esta sensata proposta
Em fúrias o arrebatou,
E, por única resposta,
P’ra luta se preparou…
Oiço ainda gabar os beijos,
Dizer deles muito bem,
Mas findaram-me os desejos,
Já sei o sabor que têm.
Júlio Dinis. 1859
NOTA DO AUTOR – Desde já afirmo que não fui eu o
protagonista desta história. Ainda não tive uma indigestão deste género de
fruta, e nem sei, para falar francamente, se mesmo quando a tivesse, a ficaria
abominando para sempre. O caso, enquanto a mim, não foi de natureza que
justificasse semelhante aversão; mas enfim há suscetibilidades tais… Não
afirmamos, contudo, que a dieta tenha sido escrupulosamente observada.
Nesta espécie de fruta, parece-me que, ao contrário
do que se diz para as outras, é a qualidade e não a quantidade que faz o mal.
Julio Diniz. Poesias. Lisboa: Editores J. Rodrigues & C.ª, 1926.
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