Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


07/02/2015

Eu sou o deserto.
Todos os desertos são iguais, porque quando estamos acompanhados, podemos estar acompanhados de mil maneiras diferentes. Depende de quem está à nossa volta, ou daquilo que nos cerca. Mas a solidão é só uma, é sempre a mesma. Por isso, eu sou todos os desertos em toda a sua vastidão, pois a minha solidão é a solidão de todas as pessoas, de todos os seres vivos, de todas as pedras, de todas as perdas.
[…]
O pistoleiro baixou a arma e, pela primeira vez, sentiu uma vertigem estranha na pele, algo que o fez estremecer. Olhou a loira nos olhos e a vertigem entrou-lhe para dentro do corpo, abriu-lhe a carne até ao coração. Estefania sentiu a pernas a tremer, as narinas a dilatar-se, e teve medo. Passava-se alguma coisa, mas ele ainda não a sabia identificar. Continuou a fixar os olhos claros da loira e percebeu então que estava apaixonado. Era como um daqueles santos anacoretas que, depois de me adotarem como casa, depois de anos de deserto, veem Deus. Veem uma sarça a arder e ajoelham-se perante a visão da Divindade. Atirar-se-iam contra aquele fogo, dariam a sua vida, despiriam o corpo como a alma faz ao morrer, fariam qualquer coisa, pois amam até ao infinito. É por isso que os homens chamam Deus a esse fogo, porque é um sentimento de plenitude. Pode levar anos a crescer, invisível, escondido dentro do corpo, ou pode aparecer como um soluço, de um momento para o outro. Não é preciso ter um feitio compatível ou um corpo que encaixa no nosso. Não importa, porque quando se vê essa sarça ardente, já não há Eu e já não há Outro. É tudo areia até perder de vista, é tudo luz a queimar as entranhas.


Afonso Cruz. A Morte não Ouve o Pianista. Lisboa: Santillana, 2012.

Sem comentários:

Enviar um comentário