Eu sou o deserto.
Todos os desertos são iguais,
porque quando estamos acompanhados, podemos estar acompanhados de mil maneiras
diferentes. Depende de quem está à nossa volta, ou daquilo que nos cerca. Mas a
solidão é só uma, é sempre a mesma. Por isso, eu sou todos os desertos em toda
a sua vastidão, pois a minha solidão é a solidão de todas as pessoas, de todos
os seres vivos, de todas as pedras, de todas as perdas.
[…]
O pistoleiro baixou a arma e,
pela primeira vez, sentiu uma vertigem estranha na pele, algo que o fez
estremecer. Olhou a loira nos olhos e a vertigem entrou-lhe para dentro do
corpo, abriu-lhe a carne até ao coração. Estefania sentiu a pernas a tremer, as
narinas a dilatar-se, e teve medo. Passava-se alguma coisa, mas ele ainda não a
sabia identificar. Continuou a fixar os olhos claros da loira e percebeu então
que estava apaixonado. Era como um daqueles santos anacoretas que, depois de me
adotarem como casa, depois de anos de deserto, veem Deus. Veem uma sarça a
arder e ajoelham-se perante a visão da Divindade. Atirar-se-iam contra aquele
fogo, dariam a sua vida, despiriam o corpo como a alma faz ao morrer, fariam
qualquer coisa, pois amam até ao infinito. É por isso que os homens chamam Deus
a esse fogo, porque é um sentimento de plenitude. Pode levar anos a crescer,
invisível, escondido dentro do corpo, ou pode aparecer como um soluço, de um
momento para o outro. Não é preciso ter um feitio compatível ou um corpo que
encaixa no nosso. Não importa, porque quando se vê essa sarça ardente, já não
há Eu e já não há Outro. É tudo areia até perder de vista, é tudo luz a queimar
as entranhas.
Afonso Cruz. A Morte não Ouve o Pianista. Lisboa: Santillana, 2012.
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