Que quereis, real senhor?
Vossa alta senhoria?
El-rei estava na
torre de menagem e, pensativamente, contemplava o seu reino de uma janela que
sobre ele deitava.
A perder de vista,
até às montanhas rosadas que sustinham o mar, era um tabuleiro revolto de
leiras cultivadas, extensões sombreadas de bosques, sulcos de ravinas e
montados, negrumes de matagais imensos e medonhos. Muito ao longe, a torre de
um mosteiro, de ameias pontudas, impunha-se sobre agros elaborados e serenos.
Mas a dois tiros de besta, para além do burgo de casebres de pedra mal
amanhada, cobertos de colmos apodrecidos, já se eriçavam as urzes da coutada
escura, abrindo a um matagal de floresta cerrada, onde, pelos dias eram
senhores os ursos e, pelas noites, campeavam as encantações dos rochedos e das
árvores, único desafio conhecido ao poder do rei, que não tinha leis nem
validos que pudessem com ele.
Não se moveu el-rei
quando Jano se anunciou e se ajoelhou a seus pés. Desejando, no íntimo, estava
que o conde nunca mais chegasse. Não lhe deu para entrar logo no discurso que,
desde há muito, vinha aparelhando, porventura inspirado pela contemplação dos
seus domínios, em que o solar de Jano figurava um ponto mal discernível na
paisagem.
Lento, cofiando a
barba, acenou ao conde para que se levantasse. Encarou-o, infixamente, por um
instante. Depois, inquiriu em voz incerta:
- Sabeis, conde, as
agruras que sofre um rei para entregar em boa ordem, a quem Deus assinalar, a
terra e o povo que confiados lhe foram pelo mesmo Deus?
- Eu, senhor, pobre
de mim, pouco mais sei que de montarias e fossados, e o que baste dos Sagrados
Textos para salvação de minha alma…
- Quando Nosso
Senhor for servido convocar-me, será a infanta rainha e terá de se valer, sem
meu conselho e amparo… ou o de outrem que lhe mereça estima e fé…
O rei suspirou,
passou em frente do conde, que se mantinha de cabeça baixa, num silêncio
embaraçado, e sentou-se a uma mesa de madeira tosca que ocupava o centro da
quadra. Durante uns instantes, pareceu meditar, com a cabeça entre as mãos.
Depois, num assomo de coragem, procurou, em voz já firmada:
- Que faríeis vós,
conde, pelo vosso rei?
- Tudo o que tenho
vos pertence, meu senhor, e se mais pudera acrescentar, depois dos trabalhos
que passei, a bem de vosso nome e de vossa fortaleza…
O rei deu uma
punhada com força na mesa e ergueu-se, ameaçador. Instintivamente, Jano recuou.
“
Mário de Carvalho.
“O Conde Jano”, in Quatrocentos Mil
Sestércios Seguido de O Conde Jano, Lisboa, Caminho, 1991
Obrigada,
querida amiga Natália, por esta sugestão de leitura, que me levou até às noites
de luar no pátio da casa da minha avó, até às histórias que a sua voz tecia por
entre os montes salpicados de brilhos ancestrais…