Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.
Vergílio Ferreira
19/01/2015
surucucu
Fui mordido sem remédio,
quem me mordeu foste tu...
e agora morro de tédio,
veneno surucucu.
Foi numa triste cubata,
mais longe do que a distância,
mais longe do que a saudade
que é tempo morto que mata.
Nunca mais posso esquecer
a tua boca sem fala,
quando um leão, que era rei,
assustava e complicava
os murmúrios da sanzala.
Uma palmeira,
à luz da Lua,
parecia que rezava
naquele mundo profano!...
Fui mordido... - Foste tu! -
nunca mais posso esquecer-te.
- veneno surucucu.
Tomaz Vieira da Cruz
17/01/2015
Madame Carlota havia acertado tudo, Macabéa estava
espantada. Só então vira que a sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar
ao ver o seu lado oposto, ela que, como eu disse, até então se julgava feliz.
Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no
beco escurecido pelo crepúsculo – crepúsculo que é hora de ninguém. (…) Macabéa
ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava
mudada. E mudada por palavras – desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até
para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia
em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se não
era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como
havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de
repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não
chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria.
Então, ao dar o passo de descida da calçada para
atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora, é já,
chegou a minha vez!
Clarice Lispector. A hora da estrela
Depois que Olímpico a despediu, já que ela não era
uma pessoa triste, procurou continuar como se nada tivesse perdido. (Ela não
sentia desespero, etc. etc.). Também que é que ela podia fazer? Pois ela era
crónica. E mesmo tristeza também era coisa de rico, era para quem podia, para
quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo.
Esqueci de dizer
que no dia seguinte ao que ele lhe dera o fora ela teve uma ideia. Já que
ninguém lhe dava festa, muito menos noivado, daria uma festa para si mesma. A festa
consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor-de-rosa como o que
usava, mas vermelho vivante. No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora
dos contornos para que os seus lábios tivessem aquela coisa esquisita dos
lábios de Marylin Monroe. Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura
que por sua vez a olhava espantada.
(…)
- Me desculpe perguntar: ser feia dói?
- Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho.
Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.
- Eu não sou feia!!! – gritou Glória.
Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de
não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda.
Mas se arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase impessoal. Glória
perguntou-lhe:
- Por que é que você me pede tanta aspirina? Não
estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me dôo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, não sei explicar.
Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar.
Transformara-se em simplicidade orgânica. E arrumara um jeito de achar nas
coisas simples e honestas a graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo
passar. Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava o grande tempo.
Era supersónica de vida. Ninguém percebia que ela ultrapassava com a sua
existência a barreira do som. Para as pessoas outras ela não existia. A sua
única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas sem água, assim a
seco. Glória, que lhe dava aspirinas, admirava-a muito, o que dava a Macabéa um
banho de calor gostoso no coração.
Clarice Lispector. A hora da estrela
09/01/2015
Respiro fundo à beira-mar e o
poder do oceano entre em mim a calma do universo. (…) Quem sente os limites do
seu corpo? e um corpo é tão limitado. Pobre corpo tão frágil. É o meu absoluto.
Tão instável. Um pé em falso e toda a sua imponência se desmorona. Uma breve
rasteira. O chão que foge. Orgânica de ideias, o peito alto, os músculos; mas
um breve desequilíbrio, e tudo por terra, oh, o rei da criação. (…) Ah, tudo é ridículo, exceto saber que é tudo.
O trágico é que saber não adianta. Isto é assim, vou pôr-me a fazer perguntas?
Porque a última resposta tem sempre atrás uma pergunta sem resposta, não vale a
pena insistir. De degrau em degrau, de doutrina em doutrina, de erro em erro –
eu.
Vergílio Ferreira. Nítido Nulo
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