Procuro-te no corredor onde se
ouve sempre o tiquetaque do pêndulo do relógio, de quarto em quarto de hora
soam badaladas que são a música da casa, talvez o próprio tempo que nela se
condensou, pode tocar-se o tempo e ouvi-lo, eu sei que pode.
Há retratos a óleo, cheira a
alfazema, madeira velha, gente que já não há, oiço o tilintar das chaves que
minha tia traz à cintura e são como um ceptro, um símbolo do seu poder dentro
da casa. Abro a porta da sala de visitas, do lado esquerdo: mais quadros e
sacos de alfazema sobre as mesas, encosto o rosto à porta envidraçada que dá
para o varandim onde todas as tardes de julho aparecias à hora do chá. Passo a
mão pelo piano. A tia sentava-se e tocava um tango argentino, sempre o mesmo,
tocava-o com tal intensidade que muitas vezes me perguntei se não seria a sua
música interior, a sua paixão secreta, o seu tango dançado de uma só vez.
É de novo julho, a tia está
sentada ao piano, enlaço-te, encaixamos um no outro, forma com forma, tudo se
ajusta. Os nossos corpos têm a mesma batida, o mesmo ritmo, o mesmo tango por
dentro. Alma com alma, diria o padre.
Manuel Alegre. A terceira rosa