Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


24/02/2012

“Avó, não aprendi convosco tudo o que precisava de ser aprendido. Também vós tivestes dois Céus a dividir a vossa vida – um céu estrelado e um céu negro – mas, apesar de todas as aflições, conseguistes sempre passar para o lado mais brilhante. Mas, depois de tantos dias na obscuridade desta cela, como é que se foge do sofrimento e da morte? Dizei-me, avó, como?
(…)
O desejo ardente de ser abraçada por vós, como quando era pequena, assalta-me às vezes com tanta força que tenho de gemer. Em vez de chorar, esforço-me por imaginar o que me diríeis se os vossos lábios não estivessem selados. Não sei que palavras escolheríeis para me ajudar nestas circunstâncias, mas recordo-me também de me terdes falado de compaixão.
(…)
Mesmo que estejais morta, continuo a fruir da vossa presença nos meus sonhos. Por várias vezes, depois de adormecer, fui visitada pela vossa aparição. Vestida com uma longa camisa de linho branco e com os olhos brilhantes fixos em mim, ordenastes-me que preservasse a vida. Eu esforço-me, avó, e, por reconhecer como graças à compaixão recomeçastes a viver, deixando para trás as vossas amarguras, oiço-vos novamente. A vossa voz é límpida e forte e pouco importa que me chegue dos limbos da memória ou do outro mundo. O que importa é que não me sinto só nesta luta contra a solidão e contra o medo.”

Ana Cristina Silva. As Fogueiras da Inquisição


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