Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


05/01/2013


Que quereis, real senhor?

Vossa alta senhoria?

 

El-rei estava na torre de menagem e, pensativamente, contemplava o seu reino de uma janela que sobre ele deitava.

A perder de vista, até às montanhas rosadas que sustinham o mar, era um tabuleiro revolto de leiras cultivadas, extensões sombreadas de bosques, sulcos de ravinas e montados, negrumes de matagais imensos e medonhos. Muito ao longe, a torre de um mosteiro, de ameias pontudas, impunha-se sobre agros elaborados e serenos. Mas a dois tiros de besta, para além do burgo de casebres de pedra mal amanhada, cobertos de colmos apodrecidos, já se eriçavam as urzes da coutada escura, abrindo a um matagal de floresta cerrada, onde, pelos dias eram senhores os ursos e, pelas noites, campeavam as encantações dos rochedos e das árvores, único desafio conhecido ao poder do rei, que não tinha leis nem validos que pudessem com ele.

Não se moveu el-rei quando Jano se anunciou e se ajoelhou a seus pés. Desejando, no íntimo, estava que o conde nunca mais chegasse. Não lhe deu para entrar logo no discurso que, desde há muito, vinha aparelhando, porventura inspirado pela contemplação dos seus domínios, em que o solar de Jano figurava um ponto mal discernível na paisagem.

Lento, cofiando a barba, acenou ao conde para que se levantasse. Encarou-o, infixamente, por um instante. Depois, inquiriu em voz incerta:

- Sabeis, conde, as agruras que sofre um rei para entregar em boa ordem, a quem Deus assinalar, a terra e o povo que confiados lhe foram pelo mesmo Deus?

- Eu, senhor, pobre de mim, pouco mais sei que de montarias e fossados, e o que baste dos Sagrados Textos para salvação de minha alma…

- Quando Nosso Senhor for servido convocar-me, será a infanta rainha e terá de se valer, sem meu conselho e amparo… ou o de outrem que lhe mereça estima e fé…

O rei suspirou, passou em frente do conde, que se mantinha de cabeça baixa, num silêncio embaraçado, e sentou-se a uma mesa de madeira tosca que ocupava o centro da quadra. Durante uns instantes, pareceu meditar, com a cabeça entre as mãos. Depois, num assomo de coragem, procurou, em voz já firmada:

- Que faríeis vós, conde, pelo vosso rei?

- Tudo o que tenho vos pertence, meu senhor, e se mais pudera acrescentar, depois dos trabalhos que passei, a bem de vosso nome e de vossa fortaleza…

O rei deu uma punhada com força na mesa e ergueu-se, ameaçador. Instintivamente, Jano recuou. “

 

Mário de Carvalho. “O Conde Jano”, in Quatrocentos Mil Sestércios Seguido de O Conde Jano, Lisboa, Caminho, 1991

 

 

Obrigada, querida amiga Natália, por esta sugestão de leitura, que me levou até às noites de luar no pátio da casa da minha avó, até às histórias que a sua voz tecia por entre os montes salpicados de brilhos ancestrais…

 

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