Reabre o céu depois de uma chuvada
no azul do dia.
É o azul do nada com que se fazem os deuses e a poesia.

Vergílio Ferreira


28/06/2014

Procuro-te no corredor onde se ouve sempre o tiquetaque do pêndulo do relógio, de quarto em quarto de hora soam badaladas que são a música da casa, talvez o próprio tempo que nela se condensou, pode tocar-se o tempo e ouvi-lo, eu sei que pode.
Há retratos a óleo, cheira a alfazema, madeira velha, gente que já não há, oiço o tilintar das chaves que minha tia traz à cintura e são como um ceptro, um símbolo do seu poder dentro da casa. Abro a porta da sala de visitas, do lado esquerdo: mais quadros e sacos de alfazema sobre as mesas, encosto o rosto à porta envidraçada que dá para o varandim onde todas as tardes de julho aparecias à hora do chá. Passo a mão pelo piano. A tia sentava-se e tocava um tango argentino, sempre o mesmo, tocava-o com tal intensidade que muitas vezes me perguntei se não seria a sua música interior, a sua paixão secreta, o seu tango dançado de uma só vez.
É de novo julho, a tia está sentada ao piano, enlaço-te, encaixamos um no outro, forma com forma, tudo se ajusta. Os nossos corpos têm a mesma batida, o mesmo ritmo, o mesmo tango por dentro. Alma com alma, diria o padre.


Manuel Alegre. A terceira rosa
Um nome escrito no tempo

Teu nome antes mesmo do caderno
Teu nome na negra lousa eu o escrevi
Eu o escrevi e apaguei e se perdeu e renasceu
Teu nome efémero teu nome eterno
Teu nome onde eras tu mesmo sem ti
Teu nome eu o escrevi eu o perdi
Teu nome que saiu das folhas para o mundo
Apesar da tinta que lentamente esmaeceu
Teu nome eu o escrevi e se inscreveu
De tal modo dentro de mim tão fundo
Que já não sei se és tu ou eu.

Teu nome em toda a parte eu o escrevi
Nas árvores nas águas nas areias
No caderno e na lousa o andei compondo
No sangue que circula em minhas veias
Teu nome eu o perdi eu o perdi
E quando chamo eu mesmo é que respondo.


Manuel Alegre. Livro do português errante
Um perfume de nardo

Em verdade te digo: Não
espero a eternidade. E sei
que nenhum verso vence a morte.

Procuro apenas um sinal
um ritmo que me restitua
a impercetível respiração da terra.

Talvez os cabelos de Maria
irmã de Marta
a enxugar-me os pés.

Porque todos os poemas são mortais
e o que fica é talvez
um perfume de nardo. E nada mais.


Manuel Alegre. Livro do português errante
Poema do português errante

Por um caminho à noite caminhava
caminhava de noite sem sentido
pela própria cadência era levado
caminhava movido por um ritmo
a música interior que mais ninguém
ouvia. Caminhava de noite e não havia
sequer o rumo e o sentido. Nem
a rosa dos ventos e os pontos cardeais
nem Cruzeiro do Sul nem bússola nem estrela.
Caminhava por caminhar. Apenas
por um íntimo impulso um movimento
irreprimível do seu próprio pensamento.
Ou nem sequer. Talvez não fosse
senão a própria marcha. Um corpo
avante. Um corpo em seu mistério caminhante
não mais que um corpo em marcha no caminho
ninguém sabe ao certo se perdido.
E só se ouvia o som do seu arfar
e não havia aliás outro sentido
senão o de caminhar por caminhar.


Manuel Alegre. Livro do português errante

25/06/2014

Tu

Com a noite dos teus olhos
escusava lua e estrelas.

Com a fonte da tua boca
não teria mais sede.

Com a raiz do teu ombro
para quê teto ou abrigo?

Só a luz me faria falta
para poder olhar-te.


Luísa Dacosta. A maresia e o sargaço dos dias
Fatalidade

Não sei tecer
senão espumas,
nuvens
e brumas.
Coisas breves,
leves,
que o vento desfaz.

Como prender-te
em teia tão frágil?


Luísa Dacosta. A maresia e o sargaço dos dias
Busca

Procuro a palavra,
a de sílabas de luz,
que inteira nos revelaria.
Impossivelmente, busco
a nunca encontrada.
Embrionária e prisioneira,
dorme para todo o sempre
no seu ovo de silêncio.


Luísa Dacosta. A maresia e o sargaço dos dias

22/06/2014

Tal como o ferro enferruja com o desuso e a água estagnada apodrece ou gela quando esfria, também o vosso intelecto perde a não ser que lhe deis uso.

Leonardo da Vinci
A paciência serve-nos contra os insultos tal como o vestuário nos protege do frio. Porque se vestis mais roupas à medida que o frio aumenta, o frio não vos afetará; aumentai, da mesma forma, a vossa paciência contra grandes injúrias e estas deixarão de vos atormentar o espírito.

Leonardo da Vinci

11/06/2014

Quais são os pormenores? Qual é a intriga? Que se passa na curva do capítulo IX para o capítulo X? Alguns [leitores] são capazes de conservar todas estas minúcias no primeiro plano da sua memória; é a sua maneira de honrar uma obra-prima; mas há outra maneira de o fazer, a do espírito que se liberta, depois de cada leitura, da recordação dos pormenores para guardar apenas, mais amorosamente talvez, uma impressão do conjunto, uma sensação de personalidade, de estilo e de ritmo, de emoção: essa característica do ser, da vida profunda, que marca um grande livro ou um ser humano com o selo da sua originalidade.

Charles Morgan

04/06/2014

Deliciei-me outro dia com este jogo de palavras, olhos e “coraçom”. Na poesia trovadoresca estão as nossas raízes, o nosso início. Para ler devagar.

Queixei-m'eu destes olhos meus;
mais ora, se Deus mi perdom!,
quero-lhis bem de coraçom,
e des oimais quer'amar Deus;
       ca mi mostrou quem hoj'eu vi:
       ai! que parecer hoj'eu vi!

Sempre m'eu d'Amor queixarei,
ca sempre mi dele mal vem;
mais os meus olhos quer'eu bem,
e já sempre Deus amarei;
       ca mi mostrou quem hoj'eu vi:
       ai! que parecer hoj'eu vi!

E mui gram queixum'hei d'Amor,
ca sempre mi coita sol dar;
mais os meus olhos quer'amar,
e quer'amar Nostro Senhor;
       ca mi mostrou quem hoj'eu vi:
       ai! que parecer hoj'eu vi!

E se cedo nom vir quem vi,
cedo morrerei por quem vi.


João Garcia de Guilhade
MAR NOSSO

Emocionadamente
Te reencontro
                          hoje
                                  e
                          sempre

Mar nosso
que estás na terra
                        nesta minha
                        tua nossa
                        terra
e és sempre a mesma bênção
de água
a mesma mágoa
doce
         o mesmo indizível júbilo.

Teresa Rita Lopes. O sul dos meus sonhos



ETERNA INDEFINIÇÃO DE TUDO

As hortênsias vão mudando de cor com a idade.
Como as pessoas.
                                Quando desabrocham
as inúmeras pétalas do novelo são rosadas
depois ficam azuis depois lilases
                                                          parece que o lilás
é a cor mais espiritual.
                                        Gosto mais delas assim
furta-cores.
                     As cores intensas sem cambiantes
cansam-me.
                     Gosto delas indecisas
                                                           Sorrindo
para a eterna indefinição de tudo.



Teresa Rita Lopes. O sul dos meus sonhos


Muito obrigada, queridas, pela magia que me trouxeram neste livro de poesia. Mesmo imóvel neste sofá preto, sonho e fujo para mundos coloridos.

O JARDIM QUE OS DEUSES ME DERAM

Todas as manhãs (ou quase) saio para o campo
mexo na terra abro tocas para novas raízes
assisto ao parto duma folha ou duma flor
(ao nascer todas as vidas são o mesmo enternecedor
milagre)
               e isto sem sair da minha varanda
estuante de verde
                                   de vasos de todos os tamanhos
de plantas de todas as cores e feitios.
Este o jardim que os deuses me deram.
                                                                  Se fosse maior
e a sério se calhar não conseguia cuidar dele.
Fecho os olhos e estou na selva. Oiço os pássaros
inúmeros.
                   Cheiro a seiva na brisa.
                                                           O meu jardim
é pequeno como a minha vida. Como todas as vidas.
Também a Terra não é mais do que um quintal
do Universo.
                      Que digo eu? Que um canteiro.
Ou melhor: um pequeno vaso.
                                                       Tamanho de um dedal.
Mas qual do Universo! De uma galáxia
                                                                          se tanto.
Ou talvez só do nosso sistema solar.
                                                           Somos tão ínfimos
que só podemos amar coisas à nossa dimensão.
                                                                                   Por isso
é que se Deus houvesse o não poderíamos amar.
Só deuses pouco maiores do que nós. Ou Jesus. Ou Buda.
Ou o pequenino ser amado em que ocasionalmente
a divindade encarna.
                                      Tão inexplicavelmente.



Teresa Rita Lopes. O sul dos meus sonhos